sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Papa acolhe e corrige

Foto retirada daqui
O cardeal que veio do fim do mundo é alérgico ao ambiente palaciano de Roma e tem denunciado, em várias circunstâncias, as doenças que contaminam a Igreja. Neste Natal ofereceu à Cúria Romana um diagnóstico completo e sistematizado das suas enfermidades no discurso das “tradicionais saudações” natalícias. Um presente que não terá agradado a muitos – e que a todos os católicos deve deixar inquietos. Pois é impossível, em tão longo elenco, não encontrarmos alguma das nossas moléstias.

Não é preciso ser hipocondríaco espiritual para identificar em nós próprios vários dos sintomas descritos pelo Papa, bem como nas nossas comunidades. “Estas doenças e tais tentações são naturalmente um perigo para todo cristão e para toda cúria, comunidade, congregação, paróquia, movimento eclesial e podem atacar, quer ao nível individual, quer ao comunitário”.

Quem não o reconhecer, não conseguirá curar-se. O restabelecimento, para além da ação do Espírito Santo, “é também fruto da consciência da doença e da decisão pessoal e comunitária de tratar-se, suportando pacientemente e com perseverança a terapia”, disse o Papa à Cúria Romana.

O Papa Francisco, para além de ter plena consciência dos seus males, tem a coragem de pedir desculpa aos que possa ter ofendido. No encontro com todos os funcionários do Vaticano, que se seguiu ao da Cúria, no final de um discurso muito mais afável que o anterior, disse de improviso: “Não quero acabar estas palavras de felicitações sem vos pedir perdão pelas faltas, minhas e de meus colaboradores, e também por alguns escândalos, que fazem tanto mal. Perdoem-me”.

O Papa Francisco, a partir do centro da Igreja, está a provocar uma verdadeira revolução coperniciana no discurso clerical. Frequentemente esse discurso resvala para a condenação intransigente dos que vivem à margem da lei eclesiástica ou dos organismos laicos – e resvalava, também, para a condescendência para com os clérigos que prevaricam ou para com as instituições católicas.

O Papa Bergoglio, pelo contrário, propõe uma mensagem de acolhimento aos que estão distantes, sobrepondo a misericórdia à lei. E tem palavras de rigor, e de muita exigência, para o interior da Igreja, a começar pela Cúria. É um Papa que acolhe e que corrige.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 26/12/2014)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Papa, Cuba e os EUA

Foto retirada daqui
Os presidentes de Cuba e dos Estados Unidos da América (EUA) anunciaram quarta-feira, numa declaração proferida à mesma hora, que iriam retomar as relações diplomáticas, suspensas há mais de cinquenta anos.

Ambos os presidentes sublinharam o papel da diplomacia vaticana para conseguir aquela que foi definida por Barack Obama como “a mais significativa das mudanças na política dos EUA em relação a Cuba, nos últimos 50 anos”. O presidente cubano, Raul Castro, agradeceu explicitamente “o apoio do Vaticano e do Papa Francisco por ter contribuído para melhorar as relações entre Cuba e os Estados Unidos”.

“No decorrer dos últimos meses – revela um comunicado da Secretaria de Estado do Vaticano – o Santo Padre Francisco escreveu ao Presidente da República de Cuba, Raúl Castro, e ao Presidente dos Estados Unidos, Barack H. Obama, convidando-os a resolver questões humanitárias de interesse comum, entre as quais a situação de alguns detidos, com o objetivo de iniciar uma nova fase nas relações entre as duas partes”.

Graças à intervenção do Papa foi libertado Alan Gross, detido em Cuba, e três espiões cubanos, presos nos Estados Unidos. Foram gestos que facilitaram a aproximação entre os dois regimes políticos.

O anúncio da melhoria do relacionamento entre Cuba e os EUA foi tornado público precisamente no dia em que o Papa completou 78 anos de idade. Provavelmente, esta foi a melhor prenda de aniversário que o Papa Francisco terá recebido. No comunicado da Secretaria de Estado é expressa a sua profunda alegria “pela histórica decisão dos Governos dos Estados Unidos e de Cuba de restabelecer relações diplomáticas, com o fim de superar, no interesse dos respetivos cidadãos, as dificuldades que marcaram sua história recente”.

A Santa Sé disponibiliza-se para continuar a “assegurar o seu apoio às iniciativas que as duas Nações tomarão para incrementar as relações bilaterais e favorecer o bem-estar dos respetivos cidadãos”, refere o comunicado.

Quando no mundo se volta a matar e a fazer a guerra em nome de uma distorcida conceção da religião, é de enaltecer o contributo de um líder religioso para promover a reconciliação entre dois povos desavindos há mais de meio século.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 19/12/2014)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Deus existe?

Imagem retirada daqui
“Deus ainda tem futuro?” é o título de um livro recentemente publicado que reúne os contributos de diversos especialistas que participaram na edição do ano passado dos colóquios “Igreja em diálogo”, onde foi refletida a questão da existência de Deus.

Esta semana um programa de televisão retomou a questão num debate em que participaram crentes e não crentes. A maior virtude deste tipo de iniciativas é confirmar a única certeza que se pode ter acerca de Deus: tanto a sua existência como a sua negação não se podem provar racionalmente.

Tanto crentes como não crentes, se forem intelectualmente honestos, sabem que a via científica – ou o método experimental, se quiserem – é inútil para essa questão. Ambos experimentam as mesmas dúvidas acerca do divino. Em todo o ateu habita um crente, que por vezes leva a melhor e então acontece a conversão; e todo o crente é assaltado por dúvidas que o podem levar ao abandono da fé.

Tanto uns como outros, porém, acreditam em muitas outras coisas que não podem comprovar cientificamente, como são muitas das realidades intrinsecamente humanas. Uns e outros não conseguem dar uma definição racional do amor, mas porventura não duvidam que são amados. Fundam essas certezas em tantos gestos e palavras que confirmam a sua crença no amor, mas continuam a não ter a certeza absoluta da sua fé.

Para nós cristãos a definição mais completa da divindade está expressa nas palavras de S. João: “Deus é amor” (1 Jo. 4, 8). Uma definição que brota da experiência de amar e ser amado. A beleza do cristianismo é a de um Deus que dá o primeiro passo ao encontro da humanidade, sem esperar nada em troca, respeitando até a sua descrença.

Ninguém tem a certeza absoluta da sua existência, mas os cristãos leem a história do mundo e a sua história pessoal à procura desses sinais da presença de Deus ou da sua ausência. Descobrem que o podem fazer presente pelos seus gestos de gratuidade, ainda que os que não creem os reduzam a mera filantropia.

Não sabem se Deus tem futuro. Mas acreditam num futuro melhor quando tem Deus como horizonte. Deus que os desafia a empenharem-se na transformação e na humanização de um presente em ordem a um melhor futuro. Assim encontram razões para acreditar e dão testemunho da sua fé.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 12/12/2014)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Padre António Vieira

Foto de Arlindo Homem retirada de Agência Ecclesia
O padre António Vieira é um expoente da língua portuguesa do qual, várias vezes, se tentou reunir toda a sua vasta obra. Esta, finalmente está disponível, cumprindo-se assim o objetivo primeiro da equipa internacional de 52 peritos liderada por José Eduardo Franco e Pedro Calafate. "Esta coleção destina-se ao grande público”, dizia José Eduardo Franco, quando se começou a publicar a obra de Vieira em Abril do ano passado. “O nosso maior objetivo é democratizar o Padre António Vieira, cujos textos devem poder chegar a toda a gente".

São trinta volumes, quinze mil páginas, onde podemos contactar de novo com o pensamento e o vigor da linguagem do sacerdote, do missionário, do pregador régio, do diplomata e, sobretudo, o defensor dos oprimidos. O "padre António Vieira era um universalista que, além de nos ensinar a tolerância e a inclusão, lutou contra a segregação e a opressão", sublinhou José Eduardo Franco na apresentação da obra.

Denunciou as injustiças do seu tempo, lutando pela abolição da escravatura sem se acobardar diante dos poderosos que enriqueciam à sua custa. Atreveu-se mesmo a afrontar a Inquisição, acusando-a de sufocar o país pelo medo – e só escapou às suas garras graças à proteção de D. João IV. Após o falecimento do rei valeu-lhe o Papa, de quem conseguiu a anulação da sentença da Inquisição que o tinha condenado em 1967 e lhe concedeu a imunidade perante qualquer tribunal, ficando apenas dependente do Tribunal Romano.

Apesar de muitas das iniquidades denunciadas pelo padre António Vieira se terem entretanto mitigado, as suas palavras continuam, infelizmente, atuais. Ontem como hoje, o peixe graúdo continua a alimentar-se do miúdo, com a complacência e insensibilidade da generalidade das pessoas. Os príncipes, “em vez de guardarem os povos como pastores” continuam a roubá-los “como lobos”, mantendo-se atualíssimas as palavras do Sermão do Bom Ladrão, proferido em 1655 na igreja da Misericórdia, em Lisboa.

Quase quatrocentos anos depois, é um outro jesuíta que nos nossos dias ergue a sua voz para defender os oprimidos e explorados do nosso tempo: o Papa Francisco. Ambos são vozes incómodas que muitos tentam silenciar. Mas a sua obra permanecerá.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 05/12/2014)

sábado, 29 de novembro de 2014

O Papa e a Europa

Papa Francisco no Parlamento Europeu
Foto retirada daqui
O Papa falou ao Parlamento Europeu e deixou uma “mensagem de esperança”. Ele tem “confiança de que as dificuldades podem revelar-se, fortemente, promotoras de unidade, para vencer todos os medos que a Europa – juntamente com o mundo inteiro – está a atravessar”. Dirigiu-se aos deputados europeus com os olhos postos na Turquia – e a pessoa humana foi o tema central do seu discurso.

A alusão à Turquia – o país que começou hoje a visitar – é evidente quando propõe o diálogo com os países que pretendem entrar na União Europeia, nomeadamente os países da “área balcânica” e os que confinam com ela. Referiu-se em particular aos que “assomam ao Mediterrâneo, muitos dos quais sofrem por causa de conflitos internos e pela pressão do fundamentalismo religioso e do terrorismo”.

No final deixou um apelo à construção de uma Europa “não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis”. Uma Europa “que abraça com coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente e com esperança o seu presente”.

Ao longo de todo o seu discurso sublinhou por diversas vezes “a centralidade da pessoa humana”. Recordou aos parlamentares que “no centro deste ambicioso projeto político, estava a confiança no homem, não tanto como cidadão ou como sujeito económico, mas no homem como pessoa dotada de uma dignidade transcendente”. E alertou para o perigo “de ser reduzido a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo, de modo que a vida, quando deixa de ser funcional para esse mecanismo, é descartada sem muitas delongas, como no caso dos doentes, dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer”.

Ainda bem que vozes como a do Papa Francisco se elevam para reclamar a “centralidade da promoção da dignidade humana” e dar algum ânimo a uma União Europeia órfã de líderes com a dimensão dos seus pais fundadores. Agora, entregue a lideranças subservientes com o “poder financeiro ao serviço de impérios desconhecidos”, a que o Papa se referiu, parece mais empenhada com o controlo do deficit do que em resolver os graves problemas sociais dos europeus. É isto que tem de mudar.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 28/11/2014)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O padre de Canelas

Foto: José Coelho/Lusa retirada daqui
Nós, os padres, podemos fazer muito mal à Igreja e por vezes não resistimos à tentação de o fazer. É isso que acontece quando perdemos o sentido da nossa missão e nos deixamos levar pelas nossas conveniências. Nessas alturas instrumentalizamos o ministério, e até as pessoas, para conseguir os nossos objetivos.

A Igreja está organizada, territorialmente, em dioceses, as quais por sua vez se organizam em paróquias. A cada diocese é dado um bispo que confia as paróquias a um sacerdote, o pároco. Este não é dono da paróquia, nem a paróquia se pode apoderar do sacerdote que é colocado à sua frente. O próprio pode pedir ao bispo para sair quando achar que está esgotada a sua missão naquele espaço. E o bispo pode mudá-lo quando entender que é o melhor para o próprio e para a Igreja. Não o deve fazer de forma despótica e arbitrária, mas deve dialogar com o sacerdote que pretende mudar.

Parece que não foi o que aconteceu na remoção do pároco de Canelas (V. N. Gaia). Antes pelo contrário, parece que D. António dos Santos, o bispo do Porto, dialogou repetidamente com o pároco, acolheu as suas propostas, foi condescendente com os seus avanços e recuos. Contudo, quando teve de decidir, nomeou o padre Albino. Nem mesmo as ameaças de revelar comportamentos prevaricadores de um outro sacerdote o demoveram. O padre Roberto utilizou essa arma de arremesso talvez por ainda não ter percebido que o comportamento da hierarquia mudou radicalmente. Se antes a tentação era esconder esses comportamentos, hoje a práxis começa a ser de denunciá-los às autoridades competentes. Como fez, e bem, o bispo do Porto.

Foram vários os padres que os bispos mudaram no início deste ano pastoral. Houve, seguramente, muitas comunidades que ficaram descontentes com a mudança. Algumas delas fizeram chegar ao seu bispo a sua discordância e até equacionaram a possibilidade de se manifestarem publicamente contra a decisão. Mas não o fizeram, quase sempre porque o pároco cessante não lhes deu força, não quis ficar seu refém e os ajudou a perceber que são chamados a acreditar em Cristo e não no padre que têm à sua frente. É por isso que a sua fé é cristã e não robertina, albinina ou antonina, como lhes diria S. Paulo (cf. 1 Cor. 3, 1-5).

(Texto publicado no Correio da Manhã de 21/11/2014)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Basílica na aldeia

Foto de Manuel Roberto retirada daqui
A igreja do Santo Cristo em Outeiro, uma aldeia perto de Bragança, foi promovida pelo Papa Francisco a Basílica Menor.

Outeiro já foi Vila e sede de concelho entre 1514 e 1853. Durante esse período foi construída a igreja de Santo Cristo para albergar uma imagem do crucificado que se encontrava numa pequena capela e que terá suado sangue a 26 de Abril de 1698. Nesse mesmo ano foi lançada a primeira pedra de um grande templo, o qual foi inaugurado a 3 de Maio de 1713. Em 1927 foi classificado como Monumento Nacional.

Apenas quatro basílicas, todas em Roma, são classificadas como Maiores. São elas a Basílica de S. João de Latrão (sede da diocese de Roma), a de S. Pedro no Vaticano, a de S. Maria Maior e a de S. Paulo Fora-de-Muros. Todas as outras, como é o caso da Basílica da Estrela em Lisboa, a Real em Castro Verde ou a do Rosário em Fátima, são Menores. E é a primeira vez que uma igreja localizada numa aldeia portuguesa é elevada à dignidade basilical. O que só foi possível, graças ao empenhamento do atual bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, que soube dar continuidade a um desejo antigo e obter a sua aprovação em apenas um ano.

Quando comemos o pão que chega à nossa mesa raramente lembramos as mãos que desbravaram a terra. Por isso é bom lembrar que quem deitou a semente para que o título de Basílica fosse atribuído à igreja do Santo Cristo foi D. António Rafael, há mais de trinta anos. Na celebração do Ano Santo da Redenção, em 1983, durante a peregrinação diocesana àquele santuário, o então bispo de Bragança-Miranda, realçou a grandiosidade do templo que “merecia ser Basílica”.

O cónego João Gomes, pároco de Outeiro, não deixou cair no esquecimento a ideia de D. António e recuperou-a por ocasião da celebração dos trezentos anos da inauguração da, agora, Basílica Menor. Para além de não deixar apagar “a torcida que ainda fumegava”, soube soprá-la no momento certo para que a ideia pudesse acender-se no tempo oportuno e tornar-se uma realidade.

Agora que despontou a primeira folha, é preciso continuar a cuidar da planta para que ela dê frutos. A Basílica do Santo Cristo é razão bastante para colocar Outeiro no mapa religioso, cultural e turístico do país.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 14/11/2014)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Ser bispo é…

Foto retirada daqui
Subir na carreira é uma aspiração legítima e louvável em qualquer percurso profissional, mas não no eclesiástico. A única ambição admitida a um clérigo é a de servir. Porque ele não é um profissional do sagrado, que vai ascendendo na hierarquia, subindo degrau a degrau até ao episcopado, mas é escolhido para desempenhar funções diversas na Igreja, sempre tendo como horizonte o serviço à comunidade e não a promoção pessoal.

Por diversas vezes o Papa tem criticado aqueles que aspiram a subir na carreira eclesiástica, cumprindo um plano que tudo submete a essa pretensão, muitas vezes travestida de serviço à Igreja, a qual, contudo, não passa de uma estratégia para atingir esse objetivo pessoal.

Na audiência desta semana censurou os sacerdotes que embarcam nessa “mentalidade mundana” e que veem no episcopado uma promoção. Para o Papa ser bispo “é um serviço e não uma honra para se vangloriar”. Esse é o testemunho de tantos santos que demonstraram que “esse ministério não se procura, não se pede, não se compra, mas se acolhe em obediência, não para se elevar, mas para se baixar, como Jesus”, disse. Por isso “é triste quando se vê um homem que procura este ofício e que faz muitas coisas para lá chegar, e, quando lá chega, não serve, pavoneia-se, vive somente para a sua vaidade”.

Para além do desagrado, Francisco, no fundo, reconhece também que tal como acontece no mundo – por exemplo na política – por vezes os eleitos não são os mais aptos para desempenhar um cargo, mas os que mais fazem por isso, por vezes sem olhar a meios para atingir os seus fins. Cujo objetivo não é, seguramente, servir, mas servir-se. Não é governar, mas governar-se.

A constatação está feita. A enfermidade está identificada. Agora aguarda-se a implementação de uma terapia adequada para a combater e um investimento na sua prevenção. O Papa já interveio de forma determinada na correção dos desmandos de alguns bispos, não se coibindo mesmo de os suspender, dada a gravidade de alguns casos. Espera-se que em relação aos “trepadores”, como já os apelidou, para além dessa firmeza nos casos mais graves, consiga igualmente encontrar formas de dificultar o seu acesso ao episcopado.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 07/11/2014)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Um Papa comunista?!

Foto AFP retirada daqui
O Papa promoveu um encontro global dos movimentos populares que lutam por causas como a erradicação da pobreza ou a inclusão social, tanto nos países ricos como nos países (ditos) do Terceiro Mundo, esta semana no Vaticano. Estas organizações reuniram-se pela primeira vez em Porto Alegre, no Brasil, em 2001 reagindo ao encontro anual de banqueiros e empresários em Davos, na Suíça. Desde então formam o “Fórum Mundial Social”, que nas suas primeiras edições continuou a realizar-se naquela cidade brasileira, tendo depois rumado a outras paragens.

É a primeira vez que um Papa se encontra com representantes de movimentos como os Sem Terra do Brasil, os Indignados de Espanha ou as associações que lutam em África contra a compra de enormes áreas de terreno para as destinar a culturas intensivas, como a produção de biocombustíveis. Para além de os receber juntou a sua voz à deles para dar um ainda maior impacto às suas reivindicações, mesmo correndo o risco de ser apelidado de “comunista”.

“É estranho, mas, quando falo destas coisas, alguns concluem que o Papa é comunista. Não percebem que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, casa e trabalho – isso pelo que vós lutais – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada estranho, é a doutrina social da Igreja", disse no discurso de encerramento do encontro.

Também não se coibiu de voltar a criticar o sistema económico que coloca no centro o “Deus do dinheiro e não a pessoa humana”. E pediu aos políticos que abandonassem o “assistencialismo paternalista” e promovessem “novas formas de participação que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com esta torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum”.

Desta forma, o Papa, mais uma vez, perante os atropelos à dignidade humana, dá um sinal claro de que prefere correr o risco de ser criticado a ficar calado. Prefere “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, tal como ele próprio escreveu na Evangelii Gaudium.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 31/10/2014)

domingo, 26 de outubro de 2014

Um Papa determinado

Foto retirada daqui
Os média foram acusados de dar mais destaque às situações irregulares do que à reflexão dos padres sinodais sobre a família. Estes, no entanto, discutiram-nas sem pôr em questão “as verdades fundamentais do sacramento do Matrimónio: a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade e a procriação, ou seja, a abertura à vida”, referiu o Papa no discurso de encerramento do Sínodo.

D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, considerou mesmo que a excessiva mediatização das questões mais polémicas “provocou um certo recuo” na assembleia sinodal, influenciando os trabalhos dos grupos linguísticos. As votações do relatório final do Sínodo revelam esse “recuo” dos bispos em relação às uniões de facto ou civis, ao acesso dos divorciados recasados aos sacramentos e, também, ao acolhimento dos homossexuais.

O parágrafo em que se pede uma “nova sensibilidade da pastoral hodierna, que consiste em colher os elementos positivos presentes nos matrimónios civis e, tendo em conta as devidas diferenças, nas uniões de facto”, passou com apenas três votos acima dos dois terços exigidos para a aprovação.

Já os parágrafos que abordavam as questões dos divorciados recasados e dos homossexuais, não tiveram essa maioria qualificada. Por essa razão, não deveriam constar do documento final do Sínodo, apesar de terem a aprovação de mais de metade dos votantes. Por imposição do Papa, foram incluídos.

Para que ficasse claro que estes temas não obtiveram a aprovação formal do Sínodo, Francisco fez publicar a votação discriminada por parágrafo. Algo que nunca tinha acontecido em nenhum relatório anterior. Para além disso, por sua iniciativa pessoal, fez do “Relatio Synodi” o “Lineamenta” do próximo. Ou seja, transformou este relatório em documento preparatório da próxima reunião sinodal – outra novidade.

Estas duas inovações demonstram a determinação do Papa em não deixar cair essas questões. Apesar de não as ter visto aprovadas pelo Sínodo, ao incluí-las no “Lineamenta” obriga os bispos e os fiéis a refleti-las durante o próximo ano.

O que se desenhava como a primeira derrota do Papa, acabou por se converter numa manifestação da sua firmeza na liderança da Igreja. Aguardemos os próximos capítulos.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 24/10/2014)

domingo, 19 de outubro de 2014

O “terramoto” sinodal


Foto Osservatore Romano/AFP retirada daqui
Nos primeiros dias do Sínodo Extraordinário sobre a família, muitos dos participantes reconheceram que a forma como as pessoas são rotuladas no discurso eclesiástico não as ajuda a aproximarem-se da Igreja. Num dos primeiros “briefings”, foi referido que certas expressões muito utilizadas na linguagem eclesiástica deviam ser abandonadas. Entre essas, destacavam: “Viver em pecado”, uma referência habitual às pessoas que coabitam antes do casamento; “intrinsecamente desordenados”, uma classificação típica dos homossexuais; e ainda, “mentalidade contracetiva” uma categorização frequente de uma sociedade que não respeita a vida.

O relatório apresentado pelo cardeal Péter Erdő na segunda-feira que resume a primeira semana de debate traduz bem essa preocupação dos padres sinodais. Na abordagem da convivência pré-matrimonial é mesmo sublinhada a necessidade de acolher e acompanhar as pessoas nessa situação, pelos mais diversos motivos, com “delicadeza e paciência”.

Em relação à homossexualidade, a expressão referida não é utilizada. O que se afirma é que “os homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã”. E questiona-se: “Somos capazes de acolher essas pessoas, garantindo-lhes um espaço fraterno em nossas comunidades”?

Quanto ao controlo da natalidade, sem deixar de sublinhar “a abertura à vida” como “exigência intrínseca do amor conjugal”, reconhece-se a “necessidade de respeitar a dignidade da pessoa, na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade”. Ou seja, sustenta-se o respeito pela “consciência pessoal do indivíduo”, conclui o padre jesuíta James Martin num artigo da revista “América”.

A forma como o Sínodo está a abordar a temática da família tem abanado os pilares em que se edificou a conceção católica do matrimónio. O relatório é mais um abanão. Para o vaticanista John Travis é um “grande terramoto”, antecedido por “meses de pequenos tremores de terra”.

Espera-se que esta abordagem não reduza a escombros a doutrina tradicional sobre a família, como temem alguns. Mas cresce a expectativa quanto à flexibilidade que será dada aos seus fundamentos para acolher “os valores presentes nas famílias feridas e nas situações irregulares”.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 17/10/2014)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Sínodo da família

Sínodo dos Bispos sobre a Família
Foto retirada daqui
O Papa abriu o Sínodo dos Bispos pedindo aos participantes que falem claro e escutem com humildade. É neste clima de abertura que os padres sinodais vão abordar temas como o divórcio, a contraceção, o aborto, as uniões de facto, os casais homossexuais, as crianças no interior de uniões homossexuais, a poligamia, o papel eclesial e social da família, a eventualidade de conceder a comunhão aos recasados.

De entre todos, o que tem merecido maior atenção mediática é o do acesso aos sacramentos por parte de quem rompeu uma anterior união e se voltou a casar. Para quem permanece só esse problema não se põe, isto porque, apesar de estar separado, continua fiel à primeira união, não lhe podendo ser negada a comunhão, ou ser padrinho ou madrinha.

Tudo isso está vedado aos recasados. É essa situação que inúmeros casais vivem com sofrimento e pedem à Igreja que encontre uma saída para a sua situação. O Papa já manifestou que é sensível a essas inquietações e pede ao Sínodo que dê uma resposta a estas pessoas.

Quanto a ela, os mais intransigentes defendem que não se pode pôr em causa o princípio da insolubilidade e da unicidade. Não admitem, por isso, nem mesmo um aligeirar do processo canónico de declaração de nulidade do anterior matrimónio, como alguns propõe. Fundamentam a sua posição na tradição da Igreja e nas palavras de Jesus: “Não separe o homem o que Deus uniu” (Mc. 10, 9).

Jean-Paul Vesco, bispo de Oran, na Argélia, numa entrevista à revista “La Vie”, diz acreditar que “é teologicamente possível afirmar, ao mesmo tempo, a indissolubilidade de qualquer verdadeiro amor conjugal, a unicidade do matrimônio sacramental e a possibilidade de um perdão em caso de fracasso do que constitui uma das mais belas, mas também das mais perigosas aventuras humanas, o casamento para toda a vida”.

Na Igreja primitiva era comum “uma prática de tolerância pastoral, clemência e paciência após um período de penitência”, dos divorciados, recorda também o cardeal Kasper, no livro “Evangelho da família”.

Compete agora ao Sínodo essa árdua tarefa de procurar conciliar o que aparentemente é irreconciliável: indissolubilidade e misericórdia. Eventualmente, recuperando procedimentos do passado.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 10/10/2014)

sábado, 4 de outubro de 2014

Pode-se criticar o Papa?

O bispo Livieres Plano reage à remoção e diz que "o Papa terá de prestar contas a Deus".
Foto retirada de Aleteia.org
O bispo paraguaio Livieres Plano reagiu violentamente à remoção que lhe foi imposta pela Santa Sé através de uma carta enviada ao Prefeito da Congregação dos Bispos, o cardeal Marc Ouellet. Chega mesmo a considerar que o afastamento da diocese de Ciudad del Este é uma decisão “infundada e arbitrária e sobre a qual o Papa terá que prestar contas a Deus”.

Foi noticiado que o principal motivo a ditar a remoção do bispo foi o encobrimento e a defesa de um sacerdote acusado de pedofilia nos Estados Unidos. São várias, contudo, as razões que levaram o Vaticano a investigar aquela diocese e o seu bispo. “Livieres não foi removido por questões de pedofilia”, disse o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, ao Catholic News Service. “Esse não foi o problema principal”, sublinhou, e esclareceu que na base desta “grave decisão” estiveram “problemas sérios na administração da diocese, na formação do clero e nas relações como os outros bispos”.

A relação de Livieres com os outros bispos foi sempre tensa. Agudizou-se quando retirou os seus seminaristas do único seminário do Paraguai, por considerar que a formação ali ministrada era “deficiente” e muito influenciada pela Teologia da Libertação. Criou um seminário próprio, com uma orientação mais tradicionalista e com apenas quatro anos de estudo, em vez dos seis que a Santa Sé recomenda. Recentemente envolveu-se numa polémica com um outro bispo do seu país, que chegou a apelidar de homossexual.

Foi este ambiente de crispação que ditou a sua remoção e, depois, o ataque que o próprio fez à decisão do Papa. Uma reação que é surpreendente para quem criticou o bispo Fernando Lugo quando este se candidatou à presidência do Paraguai, por não acatar as ordens de João Paulo II. Liviers não é o único que no passado defendeu um seguimento incondicional das determinações do Papa mas que, agora, quando lhe toca a ele e não lhe agradam, já se sente à vontade para as criticar e até por em causa.

Apesar de alguns sectores sustentarem a obediência cega às resoluções do Papa, talvez seja mais sensato admitir que até as decisões papais são passíveis de serem discutidas. O que não se pode é pôr em causa a unidade em torno do essencial da fé.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 03/10/2014)

domingo, 28 de setembro de 2014

Papa prende bispo

Arcebispo Josef Wesolowski
Foto retirada daqui
O Papa Francisco recebeu esta semana os bispos por ele nomeados durante o último ano. E, tal como noutras circunstâncias, usou esse encontro para sublinhar algumas das características que quer ver nos Pastores da Igreja: acima de tudo não quer que estes sejam “apagados ou pessimistas”, mas que cultivem e ofereçam ao mundo a “alegria do Evangelho”.

Quando são colocados numa diocese não devem aspirar a uma outra. Têm de resistir à tentação de mudar de povo, bem como de “mudar o povo”. E devem ter uma particular atenção aos mais jovens e aos mais idosos.

O Papa solicitou também aos bispos uma grande disponibilidade para receber, acolher, escutar e guiar os sacerdotes que lhes são confiados. E a manterem-se “acessíveis” a todos, “sem discriminação”. Na Evangelii Gaudium já tida recomendado aos bispos que deviam “ouvir a todos, e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo” (nº31). Agora pediu-lhes para resistirem à “tentação” de sacrificar a própria liberdade rodeando-se de “cortes ou coros de consenso”.

Os bispos são chamados, segundo o Papa, a oferecer nos mais diversos contextos “a doçura de uma paternidade que gera”, acompanhada da “firmeza da autoridade que faz crescer”. No exercício do ministério petrino, Jorge Mario Bergoglio tem preconizado para os bispos a bondade e o acolhimento. Mas não abdica da determinação e da firmeza em relação a eles quando as circunstâncias o exigem.

Disto é um bom exemplo a forma como conduziu o escândalo do ex-núncio apostólico na República Dominicana, o arcebispo Josef Wesolowski. Logo que foram tornados públicos os comportamentos reprováveis do representante diplomático da Santa Sé junto do Governo daquele país, removeu-o imediatamente do seu cargo – embora lhe tenha garantido a liberdade de movimentos, em Roma, enquanto decorria o processo.

Porém, quando se comprovaram as acusações, a Congregação da Doutrina da Fé fê-lo regressar ao estado laical. Enquanto decorre o processo judicial, o tribunal civil do Vaticano decretou a sua prisão domiciliária, dando seguimento “à vontade expressa do Papa, para que um caso tão sério e delicado fosse tratado sem demora, com o justo e necessário rigor”, revelou o porta-voz da Santa Sé.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 26/09/2014)

sábado, 20 de setembro de 2014

Papa “casa” divorciado

Foto de Alberto Pizzoli/AFP          
O Papa presidiu à celebração do casamento de vinte casais. De facto, não foi ele que os casou, foram eles que se casaram. É o único sacramento da Igreja em que os próprios que o recebem são eles os ministros do sacramento.

Quando se é batizado, é o diácono ou o sacerdote que batiza o catecúmeno. Quando se é crismado, é o bispo que crisma o crismando. Quando alguém é ordenado, é o bispo que ordena. Ninguém se ordena a si próprio. No caso dos bispos, é mesmo exigida a presença de três bispos, em comunhão plena com a Igreja.

Contudo, na linguagem corrente continua a dizer-se que “foi o padre tal que nos casou”. E até os próprios padres, por vezes, dizem impropriamente: “Fui eu que os casei”. Da mesma forma saíram diversos títulos referindo que o Papa casou…

Este tipo de cerimónias não é muito comum. João Paulo II só o fez por duas vezes. Bento XVI, enquanto Papa, que se saiba, nunca presidiu a um matrimónio. O Papa Francisco fê-lo pela primeira vez este domingo. Para esta celebração escolheu esposos nas mais variadas circunstâncias, entre os quais desempregados, alguns a viverem em união de facto e até um divorciado que casou com uma mãe solteira.

Foi este caso que mereceu maior destaque nos meios de comunicação social e gerou a ideia de que o Papa tinha feito algo de extraordinário. Só que o noivo, apesar de ser divorciado, conseguiu que o seu casamento religioso fosse declarado nulo. Pelo que, canonicamente, ele era solteiro e qualquer clérigo poderia ter abençoado o novo matrimónio.

O problema teria sido repetir o casamento católico sem que o anterior tivesse sido declarado nulo. Para esses é que a Igreja ainda não tem resposta. A maior parte dos divorciados não só não podem casar, novamente perante a Igreja, como também não podem aceder a outros sacramentos se estiverem a viver numa nova união, civil ou de facto.

Espera-se que o Sínodo dos Bispos reflita sobre essa e outras situações irregulares e que encontre uma solução para que as pessoas possam ser admitidas à confissão e comungar. Para já o Papa limitou-se a acolher diferentes percursos para o matrimónio e a cumprir integralmente a práxis da Igreja, sem deixar de sublinhar o carácter heterossexual do matrimónio.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 19/09/2014)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

ONU das religiões


Abdel-Karim Allam
Foto retirada daqui
Abdel-Karim Allam, o grande mufti do Egito, classificou o Estado Islâmico como uma organização “corrupta e extremista” e sustentou que “é um erro tremendo chamar esse grupo terrorista de ‘estado islâmico’, porque ele viola todos os valores islâmicos, os objetivos mais elevados da lei islâmica e os valores universais compartilhados por toda a humanidade”. Defendeu mesmo que os seus membros devem responder em tribunal pelas atrocidades que têm cometido na Síria e no Iraque.

O líder máximo dos muçulmanos egípcios proferiu estas afirmações no início desta semana, num encontro internacional da Comunidade de Santo Egídio que reuniu 300 líderes religiosos em Antuérpia, na Bélgica.

Não se conhecem muitas condenações tão veementes na boca dos líderes religiosos muçulmanos. No entanto, como se vê, muitos deles não aprovam o derramamento de sangue pelos motivos que os fundamentalistas advogam. Motivos, esses, já agora, que são os mesmos que os católicos invocaram há séculos e que mancharam a história da Igreja – mas que, felizmente, o pensamento católico já abandonou.

O Papa Francisco tem condenado a guerra em nome de Deus. Comentando a expulsão dos cristãos de Mossul e o conflito na faixa de Gaza, disse no início de Agosto que a guerra ofende gravemente a Deus e à humanidade. “Não se faz guerra em nome de Deus!”, afirmou.

Para ultrapassar este paradoxo, o ex-presidente israelita, Shimon Peres, defendeu numa entrevista à revista “Famiglia Cristiana” a criação de uma ONU das religiões: “Creio que deveria existir também uma Carta das Religiões Unidas, que serviria para estabelecer em nome de todas as religiões que degolar pessoas ou cometer assassinatos em massa, como vemos nestas semanas, não tem nada a ver com a religião”, afirmou. “Foi isto que propus ao Papa”.

Uma ideia que o Papa terá acolhido com interesse, na demorada audiência que concedeu a Peres. Haja por parte dos outros líderes religiosos a mesma abertura e a ONU das religiões poderá vir a ser uma realidade. Mas não basta criá-la: será preciso dotá-la dos meios necessários para que consiga, não só denunciar e condenar os fundamentalismos, mas também travá-los. Em suma, evitar que haja guerras em nome de uma conceção distorcida da religião.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 12/09/2014)

domingo, 7 de setembro de 2014

Revisão do celibato

Foto: L’Osservatore Romano
Mães biológicas e espirituais de sacerdotes escreveram ao Papa para pedir que “proteja o celibato”. O documento é assinado por 332 mulheres que, desta forma, respondem a uma outra missiva, a qual em maio teve ampla divulgação mediática, de 26 mulheres que pediram a revisão dessa disciplina eclesiástica.

Há quem pense que deixando casar os padres aumentariam as vocações ao sacerdócio e que se resolveriam muitos dos problemas associados a esta prática eclesiástica. Esta é uma forma simplista e errónea de pôr a questão: não será a partir dessas teses que a Igreja concluirá pela mudança dessa práxis.

De facto, as Igrejas que têm o celibato como opcional, como é o caso das comunidades evangélicas, ou anglicanas, ou mesmo as católicas de rito oriental, têm também falta de vocações sacerdotais. Se alguns problemas se resolveriam, outros se levantariam. Talvez por isso, os bispos de rito oriental – que sempre teve padres casados – são os que olham com maior apreensão para a revisão da obrigatoriedade do celibato para os sacerdotes. Por exemplo: uma infidelidade de um clérigo afetaria, não só as promessas sacerdotais, mas também os compromissos assumidos com a sua esposa e a estabilidade da vida conjugal.

Também não se evitariam os escândalos de pedofilia, como erroneamente alguns pensam, uma vez que essas práticas são distúrbios que nada têm a ver com o facto de as pessoas serem ou não casadas.

Não é por aí que deve passar a discussão de mudar, ou não, dessa disciplina da Igreja. O que se pode vir a equacionar é a possibilidade de, em determinadas realidades, virem a ser ordenados homens casados que já têm uma vida familiar estável e desempenham um papel de liderança da comunidade. Em muitos contextos, como os de missão, são eles que orientam a celebração dominical na ausência do presbítero, que mantêm viva a fé dos crentes e a alimentam. Por que razão não podem eles ser ordenados e garantirem a celebração da eucaristia, a confissão e a unção dos enfermos a essas pessoas?

O cerne da questão não deve ser tanto o abandono do celibato, mas a revitalização das comunidades eclesiais, de forma a que elas próprias gerem os seus pastores. E estes poderão ser celibatários ou não.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 05/09/2014)

domingo, 31 de agosto de 2014

Terrorismo interno

Foto retirada daqui
O Papa Francisco retomou, esta semana, as audiências na Praça de S. Pedro com críticas contundentes para o interior da Igreja. Regressou à temática das divisões entre os cristãos, que já abordou noutras circunstâncias, nomeadamente no encontro com os pentecostais.  Agora, porém, aplica-a ao interior das comunidades católicas e não tanto no âmbito do diálogo ecuménico.

A proposta do Papa foi uma reflexão sobre a “Igreja Una e Santa”. Recordou que “há tantos pecados contra a unidade; e não pensemos apenas nas heresias ou nos cismas, mas em faltas muito mais comuns, nos pecados ‘paroquiais’: com efeito, as nossas paróquias, chamadas a ser lugares de partilha e comunhão, infelizmente parecem marcadas por invejas, ciúmes, antipatias. Como se coscuvilha nas paróquias! Isto não é Igreja, não se faz! É verdade que isso é humano, mas não é cristão!”

São estas e outras críticas, acompanhadas por uma atitude de compreensão para com os que andam afastados, que entusiasmam muitos e incomodam alguns. Estes, aliás, têm promovido uma oposição silenciosa e sub-reptícia ao Papa muito mais perigosa que um atentado terrorista.

Um atentado terrorista faria dele um mártir das suas convicções e da renovação que propõe à Igreja e ao Mundo. Mas este terrorismo eclesiástico é muito mais perigoso, porque procura descredibilizar e esvaziar a dinâmica reformadora por ele introduzida.

“No início, criticaram-no pela simplicidade das suas roupas, depois pela sua liberdade litúrgica, mais tarde por causa da sua crítica ao sistema económico. Agora ficam incomodados com as visitas que faz aos seus amigos – é mau que tenha amigos, pior ainda se são judeus, muçulmanos ou pentecostais. Não gostam que ria, brinque, surpreenda, improvise, converse, telefone, em resumo, que haja humanamente”, escreveu Marco Velásquez Uribe, no sítio chileno “Reflexión y Liberación”.

Prossegue este autor: “A um nível mais elevado, e de maneira mais orgânica, estrutura-se uma oposição dogmática. Silenciosamente, vai ganhando força uma corrente teológica que, sem pudor, vai corrigindo os desejos reformistas do papa”.

O que se deseja é que tanto o terrorismo externo como o interno não consigam calar nem travar o Papa Francisco.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 29/08/2014)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Viagens papais com convidado especial

Foto retirada daqui
O Papa Francisco regressa da Coreia do Sul já com os olhos postos na Albânia, nos Estados Unidos e em Espanha. Confirmou esse programa na conferência de imprensa durante o voo de regresso. Nesse diálogo com os jornalistas alguns assuntos saltaram para o topo da atualidade, como as alusões ao bombardeamento norte-americano do autoproclamado Estado Islâmico, à sua esperança de vida – “dois ou três anos”, disse ele – e a hipótese de vir a resignar.

Vários outros temas, compreensivelmente, não mereceram o mesmo destaque. Na resposta a uma questão sobre as próximas viagens, o Papa revelou que, ainda este ano, irá à Albânia. Visitará aquele país por causa de os albaneses terem conseguido formar um governo de unidade nacional, com a participação de islâmicos, ortodoxos e católicos. Se ali foi possível, o Papa quer animar outros povos a fazerem o mesmo. Até entre nós, portugueses, não é fácil fazer um governo que coloque o interesse nacional acimas das estratégias político-partidárias....

Uma outra razão que o leva àquelas paragens é o facto de a fé ali se ter mantido, apesar de aquele ter sido o único país do bloco de Leste que incluía o ateísmo prático na sua Constituição. “Se tu ias à missa era anticonstitucional”, disse o Papa. Para além disso, recordou também, durante a vigência do regime comunista 1820 igrejas católicas e ortodoxas foram destruídas e outras foram transformadas em cinemas, teatros e salões de dança...

No próximo ano, atravessa o Atlântico para ir ao Encontro Mundial da Família em Filadélfia e, eventualmente, passar pelo Parlamento norte-americano e na sede das Nações Unidas. Depois seguir-se-á a visita ao Santuário de N. Sra. de Guadalupe, no México. E põe, ainda, a hipótese de aceder aos inúmeros convites para ir a Santiago de Compostela, em Espanha.

Por imposição do Papa, em todas as viagens fora de Itália a comitiva, para além dos habituais altos dignatários da Santa Sé, inclui pelo menos um funcionário de nível inferior. Nesta viagem à Coreia, por exemplo, foi convidado um telefonista do Vaticano. O Papa pretende, desta forma, demonstrar que para ele todas as pessoas são importantes, sobretudo as que, habitualmente, são menos consideradas.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 22/08/2014)

domingo, 17 de agosto de 2014

Os nossos "Franciscos"

Conferência de imprensa de apresentação da peregrinação anual
do migrante e refugiado ao Santuário de Fátima
Foto: Fatima.pt, retirada daqui
Os nossos bispos alinham o seu discurso com o do Papa Francisco e não se coíbem de criticar o capitalismo, os políticos e a falta de ética nos mercados.

D. António Francisco dos Santos, bispo do Porto, para além de ter o mesmo nome que escolheu o Papa, tem manifestado as mesmas preocupações pelos mais pobres nas palavras e em gestos, muito semelhantes. Ainda neste S. João do Porto escolheu as famílias mais desfavorecidas da Ribeira para com elas passar essas festividades.

Na homilia da missa da peregrinação anual do migrante e refugiado ao Santuário de Fátima, anteontem, não disse, como o Papa, que “a economia mata”. Mas deu o passo que se impõe, que é o de promover “uma economia de rosto humano e solidário e um sistema financeiro assente na verdade”.

Um outro Francisco – o frei Francisco Sales, diretor da Obra Católica Portuguesa para as Migrações – na conferência de imprensa de apresentação da peregrinação foi ainda mais contundente do que o seu homónimo na crítica às políticas que têm provocado um “grande fluxo migratório português, quase uma sangria da população portuguesa, pela Europa e pelo mundo”. Disse: “A emigração e as migrações são uma denúncia contra as políticas e contra os governos, ou seja, contra a incompetência dos políticos criarem condições para fixarem as suas populações”. E clarificou que essa incompetência é “fruto de uma crise de valores, de uma corrupção política e financeira que levou a que o país não tivesse condições para criar trabalhos e condições para fixar particularmente os jovens”.

D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e anfitrião da peregrinação, classificou a turbulência financeira e bancária que se vive em Portugal como mais uma manifestação da “ditadura do capitalismo financeiro e especulativo”, como a apelidou Bento XVI. Lembrou também o Papa Francisco e considerou o momento em que nos encontramos como o resultado da “tirania económico-financeira, especulativa, virtual, desligada da economia real”.

São palavras corajosas em que transparece uma sintonia com os pensamentos do anterior e do atual Papa. E – o que é fundamental – evidenciam o mesmo compromisso com os problemas dos mais desfavorecidos.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 15/08/2014)

domingo, 10 de agosto de 2014

A queda de um banco

Ricardo Salgado
Foto retirada daqui
A crise do BES é mais um exemplo de como o lucro a qualquer preço e uma gestão à margem da lei e da ética podem perverter uma atividade que deveria estar ao serviço do desenvolvimento humano, social e económico dos seus clientes e do contexto em que se insere.

“A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos”, recordava o Papa Francisco no nº 203 da “Evangelii Gaudium”.

Já Bento XVI, na “Caritas in Veritate”, avisava que “a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo” (nº 36).

De facto a Igreja não demoniza os mercados financeiros, mas valoriza o seu papel fundamental no crescimento económico, “que permitiu, entre outras coisas, apreciar as funções positivas da poupança para o desenvolvimento integral do sistema económico e social”, como se pode ler no nº 368 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, publicado em 2004, com o objetivo de apresentar de forma sistemática o pensamento católico sobre as questões sociais.

O mesmo Compêndio cita João Paulo II para denunciar “as ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo” que corrompem a atividade económica: “por um lado, há a avidez exclusiva do lucro; e, por outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: ‘a qualquer preço’. Por outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveis” (Sollicitudo Rei Socialis, nº 37).

Ambas as tendências parecem ter estado na génese do terramoto que ditou a derrocada do BES, bem como a queda do seu líder, “o banqueiro do regime”, como era considerado. Este que, se conhecia, não seguia a Doutrina Social da Igreja.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 08/08/2014)