sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Um Papa comunista?!

Foto AFP retirada daqui
O Papa promoveu um encontro global dos movimentos populares que lutam por causas como a erradicação da pobreza ou a inclusão social, tanto nos países ricos como nos países (ditos) do Terceiro Mundo, esta semana no Vaticano. Estas organizações reuniram-se pela primeira vez em Porto Alegre, no Brasil, em 2001 reagindo ao encontro anual de banqueiros e empresários em Davos, na Suíça. Desde então formam o “Fórum Mundial Social”, que nas suas primeiras edições continuou a realizar-se naquela cidade brasileira, tendo depois rumado a outras paragens.

É a primeira vez que um Papa se encontra com representantes de movimentos como os Sem Terra do Brasil, os Indignados de Espanha ou as associações que lutam em África contra a compra de enormes áreas de terreno para as destinar a culturas intensivas, como a produção de biocombustíveis. Para além de os receber juntou a sua voz à deles para dar um ainda maior impacto às suas reivindicações, mesmo correndo o risco de ser apelidado de “comunista”.

“É estranho, mas, quando falo destas coisas, alguns concluem que o Papa é comunista. Não percebem que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, casa e trabalho – isso pelo que vós lutais – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada estranho, é a doutrina social da Igreja", disse no discurso de encerramento do encontro.

Também não se coibiu de voltar a criticar o sistema económico que coloca no centro o “Deus do dinheiro e não a pessoa humana”. E pediu aos políticos que abandonassem o “assistencialismo paternalista” e promovessem “novas formas de participação que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com esta torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum”.

Desta forma, o Papa, mais uma vez, perante os atropelos à dignidade humana, dá um sinal claro de que prefere correr o risco de ser criticado a ficar calado. Prefere “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, tal como ele próprio escreveu na Evangelii Gaudium.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 31/10/2014)

domingo, 26 de outubro de 2014

Um Papa determinado

Foto retirada daqui
Os média foram acusados de dar mais destaque às situações irregulares do que à reflexão dos padres sinodais sobre a família. Estes, no entanto, discutiram-nas sem pôr em questão “as verdades fundamentais do sacramento do Matrimónio: a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade e a procriação, ou seja, a abertura à vida”, referiu o Papa no discurso de encerramento do Sínodo.

D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, considerou mesmo que a excessiva mediatização das questões mais polémicas “provocou um certo recuo” na assembleia sinodal, influenciando os trabalhos dos grupos linguísticos. As votações do relatório final do Sínodo revelam esse “recuo” dos bispos em relação às uniões de facto ou civis, ao acesso dos divorciados recasados aos sacramentos e, também, ao acolhimento dos homossexuais.

O parágrafo em que se pede uma “nova sensibilidade da pastoral hodierna, que consiste em colher os elementos positivos presentes nos matrimónios civis e, tendo em conta as devidas diferenças, nas uniões de facto”, passou com apenas três votos acima dos dois terços exigidos para a aprovação.

Já os parágrafos que abordavam as questões dos divorciados recasados e dos homossexuais, não tiveram essa maioria qualificada. Por essa razão, não deveriam constar do documento final do Sínodo, apesar de terem a aprovação de mais de metade dos votantes. Por imposição do Papa, foram incluídos.

Para que ficasse claro que estes temas não obtiveram a aprovação formal do Sínodo, Francisco fez publicar a votação discriminada por parágrafo. Algo que nunca tinha acontecido em nenhum relatório anterior. Para além disso, por sua iniciativa pessoal, fez do “Relatio Synodi” o “Lineamenta” do próximo. Ou seja, transformou este relatório em documento preparatório da próxima reunião sinodal – outra novidade.

Estas duas inovações demonstram a determinação do Papa em não deixar cair essas questões. Apesar de não as ter visto aprovadas pelo Sínodo, ao incluí-las no “Lineamenta” obriga os bispos e os fiéis a refleti-las durante o próximo ano.

O que se desenhava como a primeira derrota do Papa, acabou por se converter numa manifestação da sua firmeza na liderança da Igreja. Aguardemos os próximos capítulos.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 24/10/2014)

domingo, 19 de outubro de 2014

O “terramoto” sinodal


Foto Osservatore Romano/AFP retirada daqui
Nos primeiros dias do Sínodo Extraordinário sobre a família, muitos dos participantes reconheceram que a forma como as pessoas são rotuladas no discurso eclesiástico não as ajuda a aproximarem-se da Igreja. Num dos primeiros “briefings”, foi referido que certas expressões muito utilizadas na linguagem eclesiástica deviam ser abandonadas. Entre essas, destacavam: “Viver em pecado”, uma referência habitual às pessoas que coabitam antes do casamento; “intrinsecamente desordenados”, uma classificação típica dos homossexuais; e ainda, “mentalidade contracetiva” uma categorização frequente de uma sociedade que não respeita a vida.

O relatório apresentado pelo cardeal Péter Erdő na segunda-feira que resume a primeira semana de debate traduz bem essa preocupação dos padres sinodais. Na abordagem da convivência pré-matrimonial é mesmo sublinhada a necessidade de acolher e acompanhar as pessoas nessa situação, pelos mais diversos motivos, com “delicadeza e paciência”.

Em relação à homossexualidade, a expressão referida não é utilizada. O que se afirma é que “os homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã”. E questiona-se: “Somos capazes de acolher essas pessoas, garantindo-lhes um espaço fraterno em nossas comunidades”?

Quanto ao controlo da natalidade, sem deixar de sublinhar “a abertura à vida” como “exigência intrínseca do amor conjugal”, reconhece-se a “necessidade de respeitar a dignidade da pessoa, na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade”. Ou seja, sustenta-se o respeito pela “consciência pessoal do indivíduo”, conclui o padre jesuíta James Martin num artigo da revista “América”.

A forma como o Sínodo está a abordar a temática da família tem abanado os pilares em que se edificou a conceção católica do matrimónio. O relatório é mais um abanão. Para o vaticanista John Travis é um “grande terramoto”, antecedido por “meses de pequenos tremores de terra”.

Espera-se que esta abordagem não reduza a escombros a doutrina tradicional sobre a família, como temem alguns. Mas cresce a expectativa quanto à flexibilidade que será dada aos seus fundamentos para acolher “os valores presentes nas famílias feridas e nas situações irregulares”.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 17/10/2014)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Sínodo da família

Sínodo dos Bispos sobre a Família
Foto retirada daqui
O Papa abriu o Sínodo dos Bispos pedindo aos participantes que falem claro e escutem com humildade. É neste clima de abertura que os padres sinodais vão abordar temas como o divórcio, a contraceção, o aborto, as uniões de facto, os casais homossexuais, as crianças no interior de uniões homossexuais, a poligamia, o papel eclesial e social da família, a eventualidade de conceder a comunhão aos recasados.

De entre todos, o que tem merecido maior atenção mediática é o do acesso aos sacramentos por parte de quem rompeu uma anterior união e se voltou a casar. Para quem permanece só esse problema não se põe, isto porque, apesar de estar separado, continua fiel à primeira união, não lhe podendo ser negada a comunhão, ou ser padrinho ou madrinha.

Tudo isso está vedado aos recasados. É essa situação que inúmeros casais vivem com sofrimento e pedem à Igreja que encontre uma saída para a sua situação. O Papa já manifestou que é sensível a essas inquietações e pede ao Sínodo que dê uma resposta a estas pessoas.

Quanto a ela, os mais intransigentes defendem que não se pode pôr em causa o princípio da insolubilidade e da unicidade. Não admitem, por isso, nem mesmo um aligeirar do processo canónico de declaração de nulidade do anterior matrimónio, como alguns propõe. Fundamentam a sua posição na tradição da Igreja e nas palavras de Jesus: “Não separe o homem o que Deus uniu” (Mc. 10, 9).

Jean-Paul Vesco, bispo de Oran, na Argélia, numa entrevista à revista “La Vie”, diz acreditar que “é teologicamente possível afirmar, ao mesmo tempo, a indissolubilidade de qualquer verdadeiro amor conjugal, a unicidade do matrimônio sacramental e a possibilidade de um perdão em caso de fracasso do que constitui uma das mais belas, mas também das mais perigosas aventuras humanas, o casamento para toda a vida”.

Na Igreja primitiva era comum “uma prática de tolerância pastoral, clemência e paciência após um período de penitência”, dos divorciados, recorda também o cardeal Kasper, no livro “Evangelho da família”.

Compete agora ao Sínodo essa árdua tarefa de procurar conciliar o que aparentemente é irreconciliável: indissolubilidade e misericórdia. Eventualmente, recuperando procedimentos do passado.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 10/10/2014)

sábado, 4 de outubro de 2014

Pode-se criticar o Papa?

O bispo Livieres Plano reage à remoção e diz que "o Papa terá de prestar contas a Deus".
Foto retirada de Aleteia.org
O bispo paraguaio Livieres Plano reagiu violentamente à remoção que lhe foi imposta pela Santa Sé através de uma carta enviada ao Prefeito da Congregação dos Bispos, o cardeal Marc Ouellet. Chega mesmo a considerar que o afastamento da diocese de Ciudad del Este é uma decisão “infundada e arbitrária e sobre a qual o Papa terá que prestar contas a Deus”.

Foi noticiado que o principal motivo a ditar a remoção do bispo foi o encobrimento e a defesa de um sacerdote acusado de pedofilia nos Estados Unidos. São várias, contudo, as razões que levaram o Vaticano a investigar aquela diocese e o seu bispo. “Livieres não foi removido por questões de pedofilia”, disse o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, ao Catholic News Service. “Esse não foi o problema principal”, sublinhou, e esclareceu que na base desta “grave decisão” estiveram “problemas sérios na administração da diocese, na formação do clero e nas relações como os outros bispos”.

A relação de Livieres com os outros bispos foi sempre tensa. Agudizou-se quando retirou os seus seminaristas do único seminário do Paraguai, por considerar que a formação ali ministrada era “deficiente” e muito influenciada pela Teologia da Libertação. Criou um seminário próprio, com uma orientação mais tradicionalista e com apenas quatro anos de estudo, em vez dos seis que a Santa Sé recomenda. Recentemente envolveu-se numa polémica com um outro bispo do seu país, que chegou a apelidar de homossexual.

Foi este ambiente de crispação que ditou a sua remoção e, depois, o ataque que o próprio fez à decisão do Papa. Uma reação que é surpreendente para quem criticou o bispo Fernando Lugo quando este se candidatou à presidência do Paraguai, por não acatar as ordens de João Paulo II. Liviers não é o único que no passado defendeu um seguimento incondicional das determinações do Papa mas que, agora, quando lhe toca a ele e não lhe agradam, já se sente à vontade para as criticar e até por em causa.

Apesar de alguns sectores sustentarem a obediência cega às resoluções do Papa, talvez seja mais sensato admitir que até as decisões papais são passíveis de serem discutidas. O que não se pode é pôr em causa a unidade em torno do essencial da fé.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 03/10/2014)