domingo, 23 de fevereiro de 2014

Escravos do Séc. XXI

Cartaz do filme retirado de IMDb
O filme “12 Anos Escravo” adapta ao cinema o livro em que o músico negro Solomon Northup narra o seu sequestro em 1841 e a sua venda como escravo. Ao fim de uma dúzia de anos, conseguiu, judicialmente, recuperar a liberdade. Foi considerado o melhor filme de 2013, pela British Academy of Film and Television Arts (BAFTA) no passado domingo.

No decorrer da ação são citadas passagens bíblicas que legitimariam a escravatura. De facto, a Bíblia não condena explicitamente essa prática. Mas, sobretudo no Novo Testamento, propõe os princípios que contribuirão para a sua abolição.

S. Paulo na carta aos Gálatas escreve: “Não há escravo nem livre; pois todos são um em Cristo Jesus” (3, 28). Para além disso, não hesita em acolher Onésimo, o escravo foragido de Filémon, apesar das leis de então punirem tanto o fugitivo como aquele que o acolhia. Devolve-o acompanhado por uma das suas cartas, a mais pequena de todas, que alguns apelidam de “postal”. Pede a Filémon que o receba, já não como escravo, mas “como irmão querido” (v.16), pois ele, entretanto, tinha-o batizado.

Tal como Paulo, a Igreja nunca discriminou os escravos e sempre os admitiu aos sacramentos. Apesar de em muitos contextos ter compactuado com a escravatura, o seu Magistério condena-a desde o século XV. Desde então, na generalidade dos países, esta tem vindo a ser abolida, tendo sido Portugal o primeiro a fazê-lo por decreto do Marquês de Pombal em 12 de Fevereiro de 1761. Contudo, ainda hoje permanecem múltiplas formas de tráfico e exploração de seres humanos.

A Igreja, como lhe compete, continua a preocupar-se com esta temática. Durante o primeiro fim de semana de novembro passado, reuniram-se em Roma sessenta observadores, religiosos e leigos, que refletiram a temática do tráfico humano e formularam uma proposta contra todas as formas de escravidão. Desse encontro saiu, também, a decisão de promover em 2015 um congresso de quatro dias para aprofundar o tema.

Espera-se que a Igreja não se fique pela reflexão e produção de textos condenatórios do tráfico de pessoas. Mas que, tal como S. Paulo, nos contextos concretos em que desenvolve a sua ação, encontre formas de pôr em prática a sua posição oficial.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 21/02/2014)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Graças a Bento XVI

Foto: Filippo Monteforte/AFP
Na noite de 11 de Fevereiro de 2013 uma câmara fotográfica registou a queda de um raio na cúpula de S. Pedro. É um fenómeno que acontecerá dezenas de vezes ao longo do ano, mas essa imagem apareceu em inúmeras publicações por coincidir com a renúncia de Bento XVI. Algo que não acontecia na Igreja há quase seiscentos anos. E, pela primeira vez, foi “uma decisão tomada de forma livre e espontânea, sem estar envolta em polémica nem resultar de pressões, como aconteceu nas anteriores”, escrevi na altura. Não faltaram, contudo, leituras com as mais elaboradas teorias, atribuindo a decisão de Ratzinger a forças vaticanas obscuras.

À distância de um ano, o P. Antonio Spadaro, diretor da revista “La civiltà cattolica”, pensa que é errado atribuir a renúncia do Papa somente “à debilidade física, provocada pela idade, pelo cansaço ou a motivações símiles”. Devem-se procurar as causas de tão inusitado gesto no discurso que dirigiu aos cardeais reunidos, naquele dia, para aprovar novos santos.

“No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”. Spadaro considera estas palavras “o coração da comunicação” de Bento XVI e conclui, a partir delas, que “o Papa renuncia ao ministério petrino não somente porque se sente débil mas porque percebe que estão em jogo desafios cruciais que pedem uma energia nova”.

Os cardeais souberam ler as palavras de Bento XVI e escolheram Jorge Mario Bergoglio. Este introduziu na Igreja o dinamismo a que o seu antecessor aludia. Está a conseguir dialogar com a pós-modernidade e a afrontar com vigor as questões que ela coloca à fé. “O motor primário na cadeia de eventos que levou ao Papa Francisco foi Bento XVI, o revolucionário improvável, que colocou as rodas em movimento um ano atrás”, conclui John Allen, num artigo no jornal “The Boston Globe”, sobre a resignação de Joseph Ratzinger.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 14/02/2014)

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O declínio do Papa?

Foto retirada de ACI Digital
Há acontecimentos que merecem o destaque das primeiras páginas e a abertura dos noticiários e, depois, aos poucos, vão-se esvaziando até desaparecerem da agenda mediática.

A figuras públicas tem-lhes acontecido o mesmo. Em tempos de crise e de falta de lideranças políticas que se imponham, depressa se adere a quem aparece de novo, depositando nele todas as esperanças. O Papa Francisco foi uma dessas figuras no ano que passou. Ganhou a simpatia de crentes e não crentes. Conquistou os meios de comunicação social. Alguns, aliás, acharam que ele é um estratega e que sabe utilizar com mestria o púlpito dos média para passar uma mensagem atualizada e refrescada da doutrina cristã.

Muito do sucesso do Papa resulta da novidade que introduziu no discurso eclesiástico, acompanhando-a de gestos surpreendentes. Na verdade, os valores e os princípios que propõe e as iniciativas que toma estão em linha com o pensamento que já defendia enquanto cardeal de Buenos Aires. Um discurso que, na sua essência, tem mais de dois mil anos, mas que carece de ser atualizado a cada época e em cada contexto.

Na verdade, para um cristão, é difícil dizer algo de novo que o Evangelho não contenha: o desafio é atualizar a sua mensagem. Jesus preocupava-se com os marginalizados, os publicanos e os pecadores. Hoje o Papa fala dos refugiados e dos imigrantes ilegais, preocupando-se com os esquecidos a que chama “periferias existenciais e geográficas”.

Para alguns comentadores ser-lhe-á impossível manter esta novidade de discurso, pelo que acabará por não corresponder às esperanças que nele são depositadas, como aconteceu com Obama e outros líderes. Outros falam até de algum desgaste – e prevêem que durante o próximo ano não venha a merecer o mesmo destaque mediático.

O Papa, no entanto, não parece muito preocupado com a lógica mediática; parece, sim, querer mostrar-se mais coerente entre o que diz e o que faz. Pela minha parte, enquanto padre, acho muito importante que o pensamento do Papa seja traduzido na reforma e no governo da Igreja. Se não o for, será uma desilusão: não por perder a novidade, mas por não conseguir enxertar os valores do Evangelho no mundo contemporâneo.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 07/02/2014)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A humanidade do Papa

Foto "L’Osservatore Romano" retirada daqui
As palavras e os gestos do Papa Francisco têm contribuído para a humanização do papado. Na visita a uma paróquia periférica de Roma, a do Sagrado Coração, apresentou-se há dias como um “homem comum” e abriu o seu coração a um grupo de refugiados confessando que na sua vida, como na deles, houve “muitas coisas boas e muitas más”.

Desde Pedro, o primeiro Papa, até aos nossos dias, fez-se um longo caminho na forma de compreender e exercer o ministério petrino. Uma história que chegou a fazer do sucessor de um humilde e arrependido pescador um Papa–Rei, esvaziando-o da sua humanidade e transformando-o num ser quase inacessível e infalível.

Felizmente, nos últimos dois séculos o caminho tem sido o inverso.

Em 1870 o Concílio Vaticano I definiu a infalibilidade papal. Fê-lo, curiosamente, nas vésperas de o papado perder os Estados Pontifícios para a Itália unificada. O Papa infalível viu-se portanto confinado ao minúsculo território da Cidade do Vaticano, no qual, para vincar o seu protesto, se enclausurou.

Pio XII rasgou os muros do Vaticano com a “Via della Conciliazione”, símbolo da reconciliação entre a Santa Sé e a Itália, mas não os transpôs. Será João XXIII, o primeiro Papa a ultrapassá-los – para visitar um hospital pediátrico e uma cadeia – e a sair de Roma – para visitar Assis e o Santuário do Loreto. Mas, mais importante do que a transposição dos muros do Vaticano, foi ter despoletado o dinamismo de uma Igreja que se voltou para o mundo com a convocação de um concílio, o Vaticano II.

Paulo VI deu continuidade à atividade conciliar do “Papa Bom”, concluindo-a. E saiu de Itália para visitar a Terra Santa, a que se seguiram outros pontos do globo, como Fátima.

João Paulo II, para além de intensificar as visitas apostólicas, no final do pontificado expôs ao mundo a sua decrepitude e doença. E Bento XVI deu uma machadada na concepção tradicional do papado, despojando-o do seu carácter vitalício.

Já Francisco, mais do que o Sumo Pontífice, preferiu desde a primeira hora ser o Bispo de Roma, um homem comum, que sofre como todos. Um pecador, como qualquer dos bispos, tal como ainda há dias fez questão de recordar: “Todos os bispos somos pecadores. Todos!”

(Texto publicado no Correio da Manhã de 31/01/2014)