sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Uma Igreja pós-moderna

Apenas uma semana após a eleição do Papa Francisco, a página da Internet espanhola de informação religiosa “Religión Digital” referia que “os primeiros gestos e decisões de Bergoglio geraram uma onda de otimismo e apoio sem precedentes nos últimos pontífices”. Ao mesmo tempo, desenhava-se uma “oposição silenciosa” no interior da Igreja que ia aflorando numa ou noutra crítica.

Há dias, o mesmo sítio noticiava que “sectores tradicionalistas questionavam abertamente o pontificado de Francisco”. Citava uma reportagem do jornal norte-americano “The Washington Post” em que se dava conta das preocupações e desconfortos de muitos católicos, que, com os Papas anteriores, se habituaram a um magistério que ajudava as pessoas a construir com clareza a “identidade católica”.

Parece redutora a leitura de que os conservadores se opõem às novas ideias do Papa e que os progressistas estão satisfeitos com a sua atuação. A questão é bem mais profunda.

Tanto João Paulo II como Bento XVI “enfatizavam a importância de uma doutrina clara que não deixe lugar a dúvidas, em especial em temas relacionados com a reprodução humana e o matrimónio”, para evitar que “os católicos se percam num mundo cada vez mais relativista”, como refere o “Religión Digital”. Ambos compartilhavam a mesma perspetiva porque o edifício teórico foi gizado pela mesma pessoa: o cardeal Ratzinger.

O Papa Francisco, veio abalar a estabilidade desse edifício, não tanto por preocupações progressistas ou conservadoras, mas por defender uma nova perspetiva. O cardeal Ratzinger, herdeiro de uma tradição multisecular de organizar todas as realidades de forma racional, dedicou-se a pensar a fé e a definir os procedimentos e as regras, que ajudam as pessoas a serem melhores cristãs. O cardeal “vindo do fim do mundo” está mais preocupado com o acolhimento aos que vivem longe da fé, “as periferias geográficas e existenciais”. Nesse sentido, está em sintonia com uma das ideias mais caras à pós-modernidade: a abertura ao Outro. Esta não é uma ideia estranha ao discurso de Jesus: este recusou-se a definir quem é o próximo – na “parábola do Bom Samaritano” – mas desafiou todos a serem próximos de quem precisa.

(Texto publicado no Correio da Manhã)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Deus tem futuro?

O padre Anselmo Borges provoca as mais variadas reações.

Para uns é uma voz profética e clarividente; para outros, uma voz incómoda e quase herética. Já, por diversas vezes, tropecei nas redes sociais em considerações pouco abonatórias sobre ele. Os que se assustam com a mínima beliscadura à doutrina da Igreja, evidentemente não suportam as suas reflexões de fronteira, por vezes críticas e desalinhadas do pensamento oficial. Os que não se conformam a uma aceitação acrítica das questões da fé são espicaçados, pelas suas posições, a aprofundar as razões para acreditar. Para uns e outros, não há dúvidas de que é um provocador.

Provocatória, como o próprio assumiu, é também a questão: “Deus ainda tem futuro?”. Este foi o mote escolhido para mais uma edição dos colóquios “Igreja em diálogo”, que decorreram no fim de semana passado. Para os crentes, colocar desta forma a questão “terá até um sabor a blasfémia”. Para os não crentes “a pergunta não tem sentido”, reconhece Anselmo Borges. Esclarece que o que se pretende verdadeiramente é refletir sobre se “Deus ainda tem futuro na e para a Humanidade”. Discutir a importância de Deus no contexto de uma sociedade em crise.

Ao longo do fim de semana, crentes e não crentes refletiram sobre a relevância da religião e da crença em Deus num mundo em mudança. Paul Clavier, citado por Anselmo Borges, terá dito que “a existência de Deus é um assunto demasiado sério para ser confiado exclusivamente aos crentes”. Com o contributo de todos, entre outras conclusões, percebeu-se a necessidade de recuperar a religião para resgatar a sociedade contemporânea. “Se é verdade que o humanismo foi muitas vezes construído em oposição às religiões, também o é que estas por sua vez podem agora, num mundo secular desencantado, tornarem-se preciosos garantes de um ideal humanista, ameaçado por uma mercantilização e tecnicização cegas”, disse o sociólogo Jean-Paul Willaime, professor na Sorbonne, Paris.

Eu atrever-me-ia a dizer que necessitamos de ser resgatados da idolatria dos mercados e redescobrir o Deus que tem no ser humano a sua obra-prima. E que possui, por isso mesmo, uma dignidade divina inviolável e inegociável.

(Texto publicado no Correio da Manhã)

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Francisco em Assis

Em Assis o Papa revisitou as temáticas que tem proposto ao longo destes seis meses de pontificado: os mais pobres, as “periferias existenciais e geográficas”, a colegialidade.

Assis é a terra em que o filho de um rico mercador descobriu a alegria de nada ter. O Cardeal Bergoglio ao escolher o nome de Francisco deixou clara a sua opção pelos mais pobres e o seu programa para a Igreja do século XXI. Como na Idade Média, o Papa quer que os cristãos redescubram o valor do despojamento.
A visita a Assis era esperada desde a sua eleição. Realizou-se no dia 4 de Outubro, data em que se celebra S. Francisco. Foi uma intensa jornada, em que o Papa esteve com clérigos e religiosos, jovens e crianças, membros dos Conselhos Pastorais da diocese de Assis e, sobretudo, os mais pobres, com quem almoçou.

Visitou o lugar em que S. Francisco se desnudou para não ficar com nada do que tivesse recebido de seu pai. Especulou-se que o Papa iria apelar ao abandono das vestimentas próprias dos bispos e cardeais. De improviso esclareceu que o despojamento que o preocupa não é tanto o dos trajes eclesiásticos, mas é o da “mundanidade”, a qual grassa no seio de Igreja e deve ser combatida por todos os fiéis.

Uma outra preocupação, que traz da Argentina, é a de estar presente junto dos mais desprezados e marginalizados. “Quero sublinhá-lo, até porque é um elemento que vivi muito quando era arcebispo em Buenos Aires: a importância de sair para ir ao encontro do outro, nas periferias, que são locais mas são sobretudo pessoas, situações de vida”, disse-o ao clero, consagrados e representantes da diocese.

As reuniões dos cardeais que precederam o Conclave identificaram como prioridades para este Pontificado a reforma da Cúria Romana e um reforço da colegialidade episcopal. Para dar continuidade a esse apelo do Colégio Cardinalício, o Papa nomeou oito cardeais que, na semana passada, deram conta do trabalho desenvolvido durante os últimos meses. O Papa fez-se acompanhar na visita a Assis por esse grupo de cardeais, talvez para dar o sinal de que, com eles, quer dar resposta ao mesmo apelo que S. Francisco ali escutou, há oitocentos anos: “Reconstrói a minha Igreja”…

(Texto publicado no Correio da Manhã)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Igreja e as eleições

O respeito pela autonomia da atividade política em relação aos ditames da religião tem-se consolidado no pensamento oficial da Igreja Católica. Não é, todavia, e infelizmente, respeitado em todas as latitudes e em todos os contextos religiosos. O Papa Francisco, numa entrevista, publicada esta semana no jornal italiano “La Repubblica, afirma claramente que “a política é a primeira das atividades civis e tem um campo próprio de ação que não é o da religião. As instituições políticas são laicas por definição e operam em esferas independentes”.

Contudo, os cristãos devem intervir na política de acordo com os valores em que acreditam e pô-los em prática. Mas, a Igreja deve restringir-se “a expressar e difundir os seus valores”.

A Revolução dos Cravos pôs fim a alguma promiscuidade entre o Estado Novo e a Igreja. No entanto, no pós-25 de Abril, tanto à esquerda como à direita, vários foram os clérigos que continuaram a imiscuir-se na política, assumindo posições político-partidárias. Até há bem pouco tempo, não faltavam exemplos de líderes religiosos que não se coibiam de dar indicações de voto nas vésperas de eleições, desrespeitando mesmo o período de reflexão que as antecede. Felizmente, a Igreja Católica em Portugal nos últimos atos eleitorais tem preferido apelar à participação de todos, respeitando a consciência de cada um.

Nas últimas eleições, os bispos limitaram-se a alertar que a abstenção conduz ao “beco sem saída da desistência de contribuir para melhorar a vida da comunidade”. E sustentaram que “a todo o cidadão pertence oferecer a sua ativa colaboração, especialmente quando é convocado para votar”. Aos “profissionais da política”, os bispos portugueses pedem que se empenhem em exercer a sua atividade com “honestidade, competência e espírito de serviço”.

Em sintonia com o Papa Francisco, os bispos portugueses apelaram para que os cristãos se empenhem ativamente na vida política e trabalhem pelo “bem comum”. O respeito pela laicidade da política exige que a Igreja saiba manter este registo: não se imiscuir nas questões político-partidárias, nem se demitir de denunciar as opções políticas que vão contra os valores que defende.

(Texto publicado no Correio da Manhã)