sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Sacerdócio no feminino

Ordenação episcopal de Libby Lane
Foto retirada daqui
A ordenação episcopal de uma mulher na Igreja Anglicana serviu de pretexto para se questionar a recusa da Igreja Católica ao sacerdócio no feminino. A forma como a questão é posta pode traduzir uma forma errada de entender o ministério ordenado e, até, contrária às perspetivas rasgadas pelo Concílio Vaticano II.

Os padres conciliares, há 50 anos, abandonaram uma conceção piramidal da Igreja e definiram-na como Povo de Deus em que todos os fiéis têm a mesma dignidade (Cf. Lumen Gentium, 32). A ordenação de alguns não os promove, antes os coloca ao serviço dos demais. “O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Batismo, que é acessível a todos”, recordou o Papa Francisco (Evangelii Gaudium, 104).

Reclamar o acesso das mulheres ao sacerdócio, como um direito que lhes assiste, ou considerar que não enveredar por esse caminho é um menosprezo pelo papel da mulher na Igreja, pode, mesmo sem o pretender, contribuir para acentuar a ideia de que os clérigos são uma casta superior vedada ao género feminino.

O Vaticano II recordou que ser cristão não se reduz a uma relação pessoal e íntima com Deus, mas exige a vivência da fé e a sua celebração com os outros (Cf. Lumen Gentium, 9). A vitalidade de uma comunidade cristã traduz-se, assim, pela atenção aos mais desfavorecidos, pelo dinamismo missionário que brotam de uma fé esclarecida e por uma intensa vida de oração.

Uma comunidade viva deveria também gerar os seus líderes, homens ou mulheres, casados ou solteiros. E, se estes reunissem as condições consideradas adequadas, poderiam presidir à celebração da Eucaristia, perdoar os pecados e ungir os doentes. Ao fazê-lo, não seriam superiores, mas somente desempenhariam uma tarefa diferente entre iguais. Para garantir a unidade e a comunhão com a Igreja na sua catolicidade teriam no bispo a sua referência, como o maior servidor da comunidade diocesana, e no Papa o garante da unidade na diversidade das diferentes igrejas.


É neste enquadramento que deve ser refletido o ministério ordenado, bem como a sua atribuição a homens ou mulheres, casados ou solteiros. Fazê-lo numa perspetiva individualista de reivindicação de um direito pessoal, ou de género, é um erro.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 30/01/2015)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Os “coelhos” do Papa

Foto retirada daqui
A bordo do avião, no regresso das Filipinas, o Papa não falou só de coelhos. Falou também de “um país que sabe sofrer”. E não se esqueceu dos pobres, “as vítimas desta cultura do descarte”. Denunciou o terrorismo de Estado que lança os cidadãos na pobreza e dos que dela se aproveitam para fazer uma “colonização ideológica”. Ergueu a voz contra a corrupção e os corruptos, que roubam o povo.

Como é normal e natural, o que mereceu um maior destaque e gerou uma maior discussão foi a alusão à paternidade responsável, por causa da formulação utilizada pelo Papa: “Creem alguns – desculpem a frase – que, para ser bons católicos, devem ser como coelhos”.

Esta expressão foi logo aproveitada para sublinhar a aparente contradição entre o apelo à paternidade responsável e a rejeição dos métodos anticoncetivos artificiais. Como se estes fossem o única forma de exercer a responsabilidade na procriação e assumindo que a Igreja é contra eles liminarmente. Porém, Bento XVI, há cinco anos, admitiu o uso do preservativo em determinadas circunstâncias. E Paulo VI, como recordou o Papa Francisco, defendeu a anticoncepção natural mas recomendou “aos confessores para serem misericordiosos, compreensivos” para com os problemas pessoais nestas matérias.

Nestes como noutros assuntos, a Igreja tem vindo a abandonar um discurso fundamentalista e a concentrar-se naquela que deve ser a sua preocupação: anunciar valores e denunciar o seu atropelo. Mais importante do que dizer se se pode ou não usar o preservativo, a Igreja deve, antes, apelar à responsabilidade dos pais para colocarem no mundo os filhos que devem. E isto poderá implicar, para alguns, não procriarem mais e, para outros, serem mais generosos e não cederem à tentação de se ficarem pelo filho único.

É isso que predominantemente acontece na Europa e em particular em Portugal, o qual, segundo o Eurostat, registava em 2012 a mais baixa taxa de fecundidade da União Europeia. A média europeia é de 1,58 filhos por cada mulher fértil. Em Portugal chega apenas aos 1,28, enquanto na Irlanda e na França, os países com o valor mais elevado, se fica pelos 2,01. Muito longe dos três filhos por casal que, “de acordo com o que dizem os peritos – mantêm a população”, como lembrou o Papa.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 23/01/2015)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O crente não odeia

Encontro inter-religioso no SriLanka
(Foto: AP Photo/Ettore Ferrari)
A guerra, o terrorismo e a violência continuam a manchar a história da humanidade com o sangue derramado de inúmeras vítimas inocentes. Em muitos dos conflitos, aos interesses económicos, políticos, étnicos são associadas de forma ilegítima motivações pretensamente religiosas, como reconheceram os participantes do encontro inter-religioso que decorreu no Vaticano em Outubro de 1999. E denunciaram com clareza que “não existe finalidade religiosa que possa justificar a prática da violência do homem sobre o homem”.

O Papa Francisco disse, na visita ao Sri Lanka, que “não se deve permitir que as crenças religiosas sejam utilizadas para justificar a violência e a guerra”. Falava num encontro que reuniu budistas, hinduístas, muçulmanos e cristãos. Num país que até 2009 sofreu vinte e seis anos de uma guerra civil com crenças religiosas à mistura. A etnia tâmil, maioritariamente hindu pretendia a independência do norte do país, cuja população é maioritariamente budista.

O Papa disse ainda que “o verdadeiro culto a Deus não leva à discriminação, ao ódio ou à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos”. Estas palavras foram proferidas durante a canonização do Pe. José Vaz, missionário português no Sri Lanka durante 24 anos, onde morreu em Janeiro de 1711. Gastou-se ao serviço dos mais necessitados, sem fazer distinção de etnia ou credo, durante o período conturbado em que os holandeses calvinistas e os portugueses católicos se guerreavam pela posse daquele território.

Um crente só consegue conviver e dialogar com pessoas com opções diferentes das suas despindo-se de todo o fundamentalismo e de toda a intolerância. A Igreja Católica demorou séculos para o fazer e conseguir conviver com as outras religiões. Só a partir do Concílio Vaticano II passou a olhar com respeito para as outras crenças. Alguns sectores no seu interior e noutras confissões religiosas ainda precisam de completar esse caminho para que não mais se volte a fazer a guerra em nome de uma falsa imagem de Deus, ou de uma fé que se diz religiosa.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 16/01/2015)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O fundamentalismo

Foto retirada daqui
O Papa Francisco condenou o atentado em Paris e classificou-o como “abominável, jamais justificável”. Para um crente, e sobretudo para um cristão, este atentado é ainda mais execrável porque é pretensamente cometido em nome de Deus e de uma fé que condena à morte os que pensam e são diferentes de nós.

A epístola de S. João diz claramente que, “se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo. 4, 20). Os fundamentalistas, mesmo dentro do catolicismo, colocam fora da fraternidade universal os não crentes. Irmão é só o que acredita, ou, no nosso caso, o batizado.

Na verdade, porém, Jesus Cristo sintetizou toda a Lei num único mandamento: o amor a Deus e ao próximo. Propositadamente, na parábola que ilustra o amor ao próximo, coloca um samaritano a prestar auxílio a um judeu. Ou seja o amor ao próximo vence as barreiras do preconceito, das rivalidades e dos ódios religiosos. Deve mesmo abarcar os inimigos. “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt. 5, 43-44).

Contudo, e apesar do que está escrito, também se matou e continua a matar em nome de um errónea conceção da fé cristã. Continua a matar-se porque, para Jesus, matar não é só tirar a vida, mas irar-se contra o outro (Mt. 5, 22). Basta percorrer as redes sociais para se constatar tanto ódio que é destilado por católicos fundamentalistas para com os que põem em questão o que eles consideram a doutrina ortodoxa e imutável.

Presumo que o ódio, e a execução dos que pensam diferente de nós, também não seja o verdadeiro Islão, mas uma conceção distorcida dos ensinamentos do profeta Maomé. O Papa, há um mês, na visita à Turquia, apelou aos líderes políticos, religiosos e académicos que professam a fé em Alá que condenem a violência e digam claramente: “Isto não é o Islamismo”.

Já alguns o têm feito. E, no rescaldo deste ignóbil atentado contra a liberdade de expressão, vários o têm feito com clareza. Pena é que dificilmente serão ouvidos, porque quem se deixa aprisionar pelo fundamentalismo não consegue ouvir ninguém.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 09/01/2015)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O ano do Papa

Papa Francisco e o cardeal Oscar Maradiaga
foto retirada daqui
A “revolução da ternura” introduzida pelo cardeal Bergoglio consolidou-se ao longo do ano que agora terminou.

Na mensagem para o dia 1 de Janeiro, denunciou, mais uma vez, “a globalização da indiferença” para com as situações de exploração e de tráfico de seres humanos. Apelou ao empenhamento de todos na “globalização da solidariedade e da fraternidade” para vencer o “flagelo da escravidão contemporânea”. A avaliar pela primeira mensagem do ano, os mais pobres e os explorados continuarão a ser a principal preocupação do Papa.

O grande acontecimento eclesial de 2014 foi o Sínodo dos Bispos. No final o Papa impôs que fossem incluídas no texto final os parágrafos sobre os divorciados recasados e o acolhimento aos casais homossexuais, apesar de não terem obtido a aprovação de dois terços da assembleia. Desta forma, a temática da família, bem como, as situações irregulares marcarão a agenda da Igreja em 2015, cujo ponto alto será o Sínodo Ordinário dos Bispos, em Outubro.

Durante o próximo ano será também implementada a Reforma da Cúria Romana. No início de Fevereiro reúnem-se de novo os nove cardeais (C9) que estão a assessorar o Papa nessa tarefa. Apresentarão o ponto da situação e as propostas concretas para a reformulação do governo central da Santa Sé. Prevê-se que haja a fusão de diversos organismos em dois novos Dicastérios, um dedicado ao laicado e família e outro às questões sociais. Será uma espécie de ministério da solidariedade, para o qual será nomeado o cardeal Oscar Maradiaga. Este é o coordenador dos C9 e um dos cardeais em que Francisco deposita maior confiança. Deixará a diocese de Tegucigalpa, nas Honduras, para estar ao seu lado em Roma.

Espera-se que ao longo do ano de 2015, a dinâmica que o cardeal Bergoglio desencadeou na Igreja se traduza em legislação. Mantendo-se contudo o primado da misericórdia sobre o legalismo; uma atitude de acolhimento para com os que estão longe da Igreja e de exigência para os que têm maior responsabilidade no seu interior.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 02/01/2015)