sexta-feira, 27 de março de 2015

Os sem-abrigo no museu

Sem-abrigo na Capela Sistina
Foto retirada daqui
O Papa Francisco na Evangelii Gaudium criticou “a economia da exclusão e da desigualdade social” (nº 53) e pediu aos políticos o empenhamento numa melhor distribuição da riqueza, na criação de emprego e na “promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo” (nº204). Recordou aos peritos financeiros e aos governantes as palavras de S. João Crisóstomo: “Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos” (nº 57).

Desde que vive no Vaticano, tem sido sensível às necessidades dos sem-abrigo que dormem na colunata de Bernini e nas soleiras dos palácios à sua volta. De entre muitas das suas iniciativas algumas têm sido amplamente noticiadas, como a instalação de sanitários onde eles pudessem tomar banho e cortar o cabelo. Bem como a distribuição de quatrocentos sacos-camas pelas ruas de Roma.

Estes e outros gestos do Papa podem ser facilmente catalogados como mero assistencialismo, ainda que traduzam a sua preocupação com aqueles que lhe estão mais próximo e a ânsia de fazer o que está ao seu alcance para aliviar os seus sofrimentos.

Contudo, não se tem ficado por aí.

No domingo passado, os mais pobres foram escolhidos para entregar os Evangelhos aos milhares peregrinos presentes na Praça de São Pedro. “Hoje ofereço-vos a todos vós que estais na Praça um presente: um Evangelho de bolso. Será distribuído gratuitamente por algumas pessoas sem teto, que vivem em Roma (…). Os mais necessitados são os que nos dão a Palavra de Deus”, disse o Papa.

Ontem, cento e cinquenta sem-abrigo visitaram gratuitamente os museus do Vaticano e comeram nos seus restaurantes. A visita foi promovida pelo arcebispo polaco Konrad Krajewski, responsável da Esmolaria Apostólica – a instituição da Santa Sé que se encarrega dos mais pobres – que guiou a visita. Desta forma “os mais carenciados, que geralmente apenas têm acesso à escadaria exterior à colunata da Praça de São Pedro” tiveram a oportunidade de “apreciar o património artístico do Vaticano”, de acordo com uma nota divulgada pela Santa Sé.

Estes são dois exemplos do empenhamento do Papa em elevar os mais pobres. E em investir na sua promoção integral, seja ela física, espiritual ou cultural.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 27/03/2015)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Descongelar o concílio

Foto retirada daqui
O Vaticano II permitiu que a liturgia da Igreja pudesse ser celebrada na língua de cada povo e cultura. Essa foi a reforma conciliar que mais rapidamente se tornou efetiva, ainda antes de estar concluído. Foi um sinal claro do desejo de dialogar com o mundo na sua língua. O Papa Francisco quer que a Igreja, depois de ter “aprendido” a falar o vernáculo agora aprofunde a experiência e a linguagem da misericórdia.

Logo no primeiro Angelus a que presidiu, quatro dias depois de ser eleito, falou da misericórdia, como a palavra que “muda o mundo”. Na mensagem para esta Quaresma expressou o desejo de que as comunidades católicas se tornassem “ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença”.

No dia em que se completaram dois anos do seu pontificado proclamou um Ano Santo dedicado a essa temática, para comemorar os cinquenta anos do Vaticano II. De acordo com o comunicado de imprensa da Santa Sé, ao iniciar-se no dia em que se encerrou o concílio, o próximo dia 8 de dezembro, “adquire um significado particular, impelindo a Igreja a continuar a obra começada com o Vaticano II”.

Para o diretor do sítio “Religión Digital”, José Manuel Vidal, o Papa está a “descongelar” o concílio e “como alguns, na Cúria e nos círculos mais conservadores, lhe continuam a pôr areia na engrenagem das suas reformas, Bergoglio convoca as massas e põe a sua primavera nas mãos das ondas de peregrinos que chegarão a Roma durante o Jubileu”.

Alguns, mesmo entre nós, defendem que já não basta “descongelar” o Vaticano II, impõe-se convocar um novo concílio. Para o Papa parece que basta tornar efetiva a reforma conciliar, que não pode ficar-se pela introdução do vernáculo na liturgia, mas ir muito além.

Seja através de um novo concílio ou pelo aprofundamento do caminho iniciado há cinquenta anos, o que parece evidente é que a Igreja precisa de continuar a abrir-se ao mundo, como desejava João XXIII e de sair de si como tem proposto o atual Papa. Que prefere “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, como escrevia na Evangelii Gaudium”. Este é mais um passo para ir ao encontro das “periferias geográficas e existenciais”.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 20/03/2015)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Missa na própria língua

Foto retirada daqui
Uma das mudanças introduzidas pelo Concílio Vaticano II foi a possibilidade de se celebrar na própria língua. Uma reforma que se tornou efetiva ainda antes do encerramento dos seus trabalhos, a 8 de dezembro de 1965. Uns meses antes, a 7 de março desse ano, Paulo VI celebrava a primeira missa em italiano.

Este sábado, o Papa Francisco presidiu à eucaristia na mesma igreja, em Roma, onde há cinquenta anos o seu antecessor inaugurava essa prática que rapidamente se estendeu a todo o mundo. Em Portugal o primeiro missal em português é publicado no final desse ano, com autorização eclesiástica dada a 22 de agosto.

Com a tradução da liturgia para a língua própria de cada comunidade, a compreensão do que se celebrava deixou de ser exclusiva do clero e de mais alguns que sabiam latim. Foi dada a possibilidade aos fiéis de entenderem o que se celebra, em vez de assistirem a um espetáculo sacro numa linguagem estranha.

Contudo, cinquenta anos depois dessa alteração, para muitos a missa continua a ser algo a que se assiste, ainda incompreensível e, apesar de ser no seu idioma, é quase como se fosse em latim. Ainda muito há a fazer para corrigir uma atitude passiva que cinco séculos de missas tridentinas incutiram nos fiéis.

Entretanto, também não desapareceram os saudosistas dos tempos em que o padre celebrava de costas para o povo. Em que só a ele era permitido recitar a oração que o Senhor nos ensinou: o Pai-nosso. Conseguiram, mesmo, que Bento XVI, em 2007, lhes concedesse a possibilidade de voltarem a assistir à missa tridentina. São os que continuam a considerar o latim como o mais adequado para os textos litúrgicos, conferindo-lhe mesmo uma auréola de língua sacra. Esquecem-se que Jesus não falou nem latim, nem grego, nem sequer hebraico. Utilizava a língua do povo: o aramaico.

Se Jesus se esforçou para falar uma linguagem que todos entendessem, então a Igreja deve fazer esse mesmo esforço. O Vaticano II deu um passo significativo, há cinquenta anos, para tornar mais acessível a sua liturgia e a sua pregação. Ora, é uma incumbência de todos, sobretudo os que presidem às celebrações, dar continuidade a este desígnio do concílio. E estimular nas comunidades uma participação mais ativa na liturgia e na vida da Igreja.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 13/03/2015)

sexta-feira, 6 de março de 2015

Um grande Bispo

Primeiro número do Mensageiro de Bragança
Foto retirada de diocesebm.pt
D. Abílio Vaz das Neves era bispo de Cochim, na Índia, quando foi escolhido para ser bispo de Bragança, a 8 de Dezembro de 1938. Amanhã cumprem-se trinta e cinco anos sobre a sua morte. Em tempos conturbados, entre a II Guerra Mundial e a Guerra Colonial, e numa diocese com parcos recursos, conseguiu deixar uma obra assinalável. Concluiu o edifício onde funciona o seminário, construiu colégios e um patronato para rapazes.

Fundou também uma congregação religiosa feminina. Criou o jornal “Mensageiro de Bragança”. Reorganizou a catequese, que era, à época, considerada modelar no país. Deu um grande impulso aos movimentos laicais. E investiu na formação dos futuros padres, reformando o seminário diocesano.

Apesar deste dinamismo, há cinquenta anos, D. Abílio terá sido o primeiro bispo a resignar antes de atingir os 75 anos, a idade prevista desde o Concílio Vaticano II. Até então os bispos não eram obrigados a resignar e permaneciam à frente da diocese até à morte. Justificou então o seu pedido por não se sentir com forças para implementar a reforma conciliar, uma desculpa que surpreendeu. E, logo na altura, se suspeitou da intervenção do poder político.

Segundo escreveu recentemente Henrique Ferreira, no “Mensageiro de Bragança”, a razão foi essa: “D. Abílio foi vítima da sua solidariedade para com o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, expulso do país entre 1959 e 1969 pelo regime político de Salazar. Na sua passagem por Bragança, foi acolhido no Paço Episcopal. Como castigo, Salazar retirou os apoios à construção da catedral (um projeto desse tempo) sob pressão dos líderes locais, e acabou por influenciar a substituição do Bispo” de Bragança.

D. Abílio não conseguiu, assim, concluir um dos muitos projetos em que se empenhou: construir a catedral. Uma aspiração adiada desde 1770 e que só viria a concretizar-se em 2001.

Um dos segredos do sucesso de D. Abílio era saber colocar a pessoa certa no lugar certo. E, apesar de ter um clero numeroso, quando, mesmo assim, este faltava, ia-o buscar fora. Como foi o caso do cónego Formigão, sacerdote de Lisboa, que veio para Bragança com a missão de refundar o seminário.

Por tudo isto, D. Abílio é hoje uma personalidade inspiradora para os momentos difíceis que atravessamos.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 06/03/2015)