sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Papa acolhe e corrige

Foto retirada daqui
O cardeal que veio do fim do mundo é alérgico ao ambiente palaciano de Roma e tem denunciado, em várias circunstâncias, as doenças que contaminam a Igreja. Neste Natal ofereceu à Cúria Romana um diagnóstico completo e sistematizado das suas enfermidades no discurso das “tradicionais saudações” natalícias. Um presente que não terá agradado a muitos – e que a todos os católicos deve deixar inquietos. Pois é impossível, em tão longo elenco, não encontrarmos alguma das nossas moléstias.

Não é preciso ser hipocondríaco espiritual para identificar em nós próprios vários dos sintomas descritos pelo Papa, bem como nas nossas comunidades. “Estas doenças e tais tentações são naturalmente um perigo para todo cristão e para toda cúria, comunidade, congregação, paróquia, movimento eclesial e podem atacar, quer ao nível individual, quer ao comunitário”.

Quem não o reconhecer, não conseguirá curar-se. O restabelecimento, para além da ação do Espírito Santo, “é também fruto da consciência da doença e da decisão pessoal e comunitária de tratar-se, suportando pacientemente e com perseverança a terapia”, disse o Papa à Cúria Romana.

O Papa Francisco, para além de ter plena consciência dos seus males, tem a coragem de pedir desculpa aos que possa ter ofendido. No encontro com todos os funcionários do Vaticano, que se seguiu ao da Cúria, no final de um discurso muito mais afável que o anterior, disse de improviso: “Não quero acabar estas palavras de felicitações sem vos pedir perdão pelas faltas, minhas e de meus colaboradores, e também por alguns escândalos, que fazem tanto mal. Perdoem-me”.

O Papa Francisco, a partir do centro da Igreja, está a provocar uma verdadeira revolução coperniciana no discurso clerical. Frequentemente esse discurso resvala para a condenação intransigente dos que vivem à margem da lei eclesiástica ou dos organismos laicos – e resvalava, também, para a condescendência para com os clérigos que prevaricam ou para com as instituições católicas.

O Papa Bergoglio, pelo contrário, propõe uma mensagem de acolhimento aos que estão distantes, sobrepondo a misericórdia à lei. E tem palavras de rigor, e de muita exigência, para o interior da Igreja, a começar pela Cúria. É um Papa que acolhe e que corrige.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 26/12/2014)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Papa, Cuba e os EUA

Foto retirada daqui
Os presidentes de Cuba e dos Estados Unidos da América (EUA) anunciaram quarta-feira, numa declaração proferida à mesma hora, que iriam retomar as relações diplomáticas, suspensas há mais de cinquenta anos.

Ambos os presidentes sublinharam o papel da diplomacia vaticana para conseguir aquela que foi definida por Barack Obama como “a mais significativa das mudanças na política dos EUA em relação a Cuba, nos últimos 50 anos”. O presidente cubano, Raul Castro, agradeceu explicitamente “o apoio do Vaticano e do Papa Francisco por ter contribuído para melhorar as relações entre Cuba e os Estados Unidos”.

“No decorrer dos últimos meses – revela um comunicado da Secretaria de Estado do Vaticano – o Santo Padre Francisco escreveu ao Presidente da República de Cuba, Raúl Castro, e ao Presidente dos Estados Unidos, Barack H. Obama, convidando-os a resolver questões humanitárias de interesse comum, entre as quais a situação de alguns detidos, com o objetivo de iniciar uma nova fase nas relações entre as duas partes”.

Graças à intervenção do Papa foi libertado Alan Gross, detido em Cuba, e três espiões cubanos, presos nos Estados Unidos. Foram gestos que facilitaram a aproximação entre os dois regimes políticos.

O anúncio da melhoria do relacionamento entre Cuba e os EUA foi tornado público precisamente no dia em que o Papa completou 78 anos de idade. Provavelmente, esta foi a melhor prenda de aniversário que o Papa Francisco terá recebido. No comunicado da Secretaria de Estado é expressa a sua profunda alegria “pela histórica decisão dos Governos dos Estados Unidos e de Cuba de restabelecer relações diplomáticas, com o fim de superar, no interesse dos respetivos cidadãos, as dificuldades que marcaram sua história recente”.

A Santa Sé disponibiliza-se para continuar a “assegurar o seu apoio às iniciativas que as duas Nações tomarão para incrementar as relações bilaterais e favorecer o bem-estar dos respetivos cidadãos”, refere o comunicado.

Quando no mundo se volta a matar e a fazer a guerra em nome de uma distorcida conceção da religião, é de enaltecer o contributo de um líder religioso para promover a reconciliação entre dois povos desavindos há mais de meio século.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 19/12/2014)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Deus existe?

Imagem retirada daqui
“Deus ainda tem futuro?” é o título de um livro recentemente publicado que reúne os contributos de diversos especialistas que participaram na edição do ano passado dos colóquios “Igreja em diálogo”, onde foi refletida a questão da existência de Deus.

Esta semana um programa de televisão retomou a questão num debate em que participaram crentes e não crentes. A maior virtude deste tipo de iniciativas é confirmar a única certeza que se pode ter acerca de Deus: tanto a sua existência como a sua negação não se podem provar racionalmente.

Tanto crentes como não crentes, se forem intelectualmente honestos, sabem que a via científica – ou o método experimental, se quiserem – é inútil para essa questão. Ambos experimentam as mesmas dúvidas acerca do divino. Em todo o ateu habita um crente, que por vezes leva a melhor e então acontece a conversão; e todo o crente é assaltado por dúvidas que o podem levar ao abandono da fé.

Tanto uns como outros, porém, acreditam em muitas outras coisas que não podem comprovar cientificamente, como são muitas das realidades intrinsecamente humanas. Uns e outros não conseguem dar uma definição racional do amor, mas porventura não duvidam que são amados. Fundam essas certezas em tantos gestos e palavras que confirmam a sua crença no amor, mas continuam a não ter a certeza absoluta da sua fé.

Para nós cristãos a definição mais completa da divindade está expressa nas palavras de S. João: “Deus é amor” (1 Jo. 4, 8). Uma definição que brota da experiência de amar e ser amado. A beleza do cristianismo é a de um Deus que dá o primeiro passo ao encontro da humanidade, sem esperar nada em troca, respeitando até a sua descrença.

Ninguém tem a certeza absoluta da sua existência, mas os cristãos leem a história do mundo e a sua história pessoal à procura desses sinais da presença de Deus ou da sua ausência. Descobrem que o podem fazer presente pelos seus gestos de gratuidade, ainda que os que não creem os reduzam a mera filantropia.

Não sabem se Deus tem futuro. Mas acreditam num futuro melhor quando tem Deus como horizonte. Deus que os desafia a empenharem-se na transformação e na humanização de um presente em ordem a um melhor futuro. Assim encontram razões para acreditar e dão testemunho da sua fé.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 12/12/2014)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Padre António Vieira

Foto de Arlindo Homem retirada de Agência Ecclesia
O padre António Vieira é um expoente da língua portuguesa do qual, várias vezes, se tentou reunir toda a sua vasta obra. Esta, finalmente está disponível, cumprindo-se assim o objetivo primeiro da equipa internacional de 52 peritos liderada por José Eduardo Franco e Pedro Calafate. "Esta coleção destina-se ao grande público”, dizia José Eduardo Franco, quando se começou a publicar a obra de Vieira em Abril do ano passado. “O nosso maior objetivo é democratizar o Padre António Vieira, cujos textos devem poder chegar a toda a gente".

São trinta volumes, quinze mil páginas, onde podemos contactar de novo com o pensamento e o vigor da linguagem do sacerdote, do missionário, do pregador régio, do diplomata e, sobretudo, o defensor dos oprimidos. O "padre António Vieira era um universalista que, além de nos ensinar a tolerância e a inclusão, lutou contra a segregação e a opressão", sublinhou José Eduardo Franco na apresentação da obra.

Denunciou as injustiças do seu tempo, lutando pela abolição da escravatura sem se acobardar diante dos poderosos que enriqueciam à sua custa. Atreveu-se mesmo a afrontar a Inquisição, acusando-a de sufocar o país pelo medo – e só escapou às suas garras graças à proteção de D. João IV. Após o falecimento do rei valeu-lhe o Papa, de quem conseguiu a anulação da sentença da Inquisição que o tinha condenado em 1967 e lhe concedeu a imunidade perante qualquer tribunal, ficando apenas dependente do Tribunal Romano.

Apesar de muitas das iniquidades denunciadas pelo padre António Vieira se terem entretanto mitigado, as suas palavras continuam, infelizmente, atuais. Ontem como hoje, o peixe graúdo continua a alimentar-se do miúdo, com a complacência e insensibilidade da generalidade das pessoas. Os príncipes, “em vez de guardarem os povos como pastores” continuam a roubá-los “como lobos”, mantendo-se atualíssimas as palavras do Sermão do Bom Ladrão, proferido em 1655 na igreja da Misericórdia, em Lisboa.

Quase quatrocentos anos depois, é um outro jesuíta que nos nossos dias ergue a sua voz para defender os oprimidos e explorados do nosso tempo: o Papa Francisco. Ambos são vozes incómodas que muitos tentam silenciar. Mas a sua obra permanecerá.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 05/12/2014)