quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A fé de uma Imaculada que se interroga

A celebração da Imaculada Conceição nesta segunda-feira, um dogma definido há 171 anos, configura uma oportunidade para refletir sobre a relação entre a fé e a razão. É comum a interpretação simplista que reduz o dogma a uma mera imposição, exigindo que o crente suspenda o intelecto e aceite as verdades dogmáticas de forma acrítica. Nesta visão, o cristão submeter-se-ia à tradição e ao dogma, sem procurar as razões profundas do seu acreditar, o que não corresponde à verdadeira fé.

No caso do dogma da Imaculada Conceição – a convicção de que Maria foi preservada do pecado original – não se trata de um decreto arbitrário do Papa, mas o reconhecimento de uma verdade já vivida e celebrada pelo Povo de Deus, desde os inícios do segundo milénio, nomeadamente em Portugal. Pio IX acabou por confirmá-lo em 1854.

Tal como aconteceu com a Imaculada, também os dogmas se foram impondo à Igreja, que não se demitiu de os estudar e de procurar entendê-los cada vez melhor. Reconheceu, porém, que jamais os conseguirá explicar e provar de uma forma puramente racional.

Maria, escolhida por Deus para ser a Mãe do Salvador, foi preservada do pecado na sua conceção, mas não foi dispensada de se interrogar nem de encontrar razões para a sua fé: é esta a perspetiva evangélica.

Quando o Anjo lhe anuncia que vai ser a Mãe de Jesus, ela interroga-se: Como será isso possível? O Anjo responde que a Deus nada é impossível. Como sinal dessa omnipotência divina, comunica-lhe a gravidez da sua prima Isabel, em idade avançada. Então Maria (mesmo continuando sem compreender plenamente a missão que lhe é confiada) dá o salto da fé e disponibiliza-se para ser a Escrava do Senhor.

Maria torna-se, assim, modelo para os cristãos: alguém que se questiona, reflete e interroga para desenvolver uma fé mais consciente e mais consistente.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 10/12/2025)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A relevância da Turquia para a Igreja

O concílio de Niceia, fresco no Salão Sistino, Vaticano
Foto: Wikimedia Commons
A região da atual Turquia foi o palco dos principais debates doutrinais dos primeiros séculos do cristianismo. Entre o século IV e o século IX, foi nesta área geográfica que se realizaram os oito primeiros concílios ecuménicos da Igreja, como recordou há dias Leão XIV no início da sua primeira viagem apostólica à Turquia e ao Líbano.

Esta viagem foi anunciada pelo Papa Francisco em novembro de 2024, com o objetivo de celebrar os 1700 anos do Concílio de Niceia (325), o primeiro ecuménico, porque todos os bispos foram convocados para refletirem questões teológicas e disciplinares a aplicar a toda Igreja.

Nos inícios do século IV discutia-se a divindade de Jesus e se tinha a mesma natureza divina do Pai. Foi em Niceia que se definiu que Jesus é verdadeiramente Deus e a sua consubstancialidade com o Pai. Essa formulação foi introduzida no Credo, o qual elenca os principais conteúdos da fé cristã. Com pequenas alterações introduzidas alguns anos depois (381) em Constantinopla, a atual Istambul, é rezada todos os domingos pelos católicos na missa. É também professada pela Igreja Ortodoxa, bem como por outras igrejas cristãs, aquelas que aceitam a validade dos concílios da igreja primitiva.

O Concílio de Niceia celebrou-se na atual İznik, na província turca de Bursa, que Leão XIV visitou sexta-feira. Realizou-se apenas doze anos após a proclamação do Édito de Milão (313) em que Constantino declarou o Império Romano como neutro em relação a qualquer religião, pondo fim às perseguições que fustigaram sobretudo os cristãos.

Em Niceia consolidaram-se alguns dos conteúdos fundamentais da fé cristã. Ali puderam reunir-se bispos de todo o mundo, graças à liberdade religiosa recentemente instaurada no Império Romano. Por isso a Turquia é tão importante para o cristianismo e justifica uma visita do Papa.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

O Pe. Samelo continua a desafiar-nos

Completa-se amanhã um ano que mais de um milhar de pessoas participaram na missa do funeral do Pe. António Samelo, em Covões, Cantanhede. Ou melhor: na eucaristia da sua Páscoa, da sua passagem para a Casa do “Deus Pai/Mãe”, com ele costumava dizer.

Algumas pessoas decidiram promover um encontro para celebrar o primeiro aniversário da Páscoa do Pe. Samelo. Decidiu-se que seria em Bragança, onde ele, nos últimos anos, passava algumas das suas férias. 

Realizou-se no sábado passado. Participaram 50 pessoas, quase trinta presencialmente – de diversos pontos do país – e as restantes on-line.

Todos estávamos conscientes que não agradaria ao Samelo (era assim que todos o tratávamos) que o encontro servisse apenas para recordar momentos significativos que cada um viveu com ele. Tinha de servir para algo mais. Acolhemos o desafio, que o fazia vibrar, de repensar a Igreja numa lógica mais evangélica em que, pelo Batismo, todos os seus membros têm a mesma dignidade. Isso implica sempre, nas suas palavras, “quebrar ‘o espinhaço’ do diabólico clericalismo”. Via na sinodalidade uma oportunidade para realizar este desígnio.

Esta é uma reflexão que não se conclui em apenas um dia. Saímos dinamizados para a continuar a fazer, individualmente ou em grupos. Voltaremos a promover este encontro, que recebeu o nome “Sal na terra – Samelidades”, no próximo ano, em Coimbra.

Há um ano, eu escrevi neste espaço que “a coerência, a radicalidade, o desprendimento, a disponibilidade e tantas outras qualidades do Samelo, permanecerão na memória daqueles que com ele contactaram. Ele continuará a desafiar-nos a sermos mais consequentes com a palavra e o exemplo de Jesus Cristo”. Verifico que, como uma pequena semente, estes mesmos valores podem desenvolver-se em cada um de nós. Dão um sabor novo às nossas vidas e à Igreja.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Dar visibilidade aos invisíveis

A peça “Elogio do Riso” é uma homenagem à comédia e aos seus mestres. Estes “são sempre tratados como o parente pobre das artes”, disse Maria Rueff, coautora e protagonista da peça, ao Diário de Notícias.

A peça é o resultado de quatro anos de pesquisa de Maria Rueff e de Rodrigo Francisco. A atriz e o diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada “mergulharam no que filósofos, dramaturgos, comediantes e outros escreveram sobre a origem e a função do riso”, segundo o DN. Durante esse percurso, juntou-se a este projeto Hajo Schüler, ator e encenador da companhia alemã Familie Floz, também ele coautor da peça.

Maria Rueff assume o papel de alguém que, não só vive no teatro, como também vive do e para o teatro. Representa aqueles que tantas vezes são ignorados e menosprezados. O “Elogio do Riso” é uma peça que “também tem coisas que fazem rir, mas eu diria que é talvez mais para pensar”, disse a atriz ao DN.

Por ironia do destino, assisti ao “Elogio do Riso” no domingo em que a Igreja Católica celebrava o IX Dia Mundial do Pobre, instituído pelo Papa Francisco em 2016 e celebrado pela primeira vez em 2017. Esse é um dia dedicado a dar mais visibilidade aos que tantos não querem ver. Àqueles que até são acusados de nada fazerem para sair dessa situação. E ali estava a Maria Rueff a dar palco aos que se movem nos bastidores do teatro. A dar visibilidade aos invisíveis.

Não foi isso que fez Jesus durante a sua vida? Não é isso que a Igreja é chamada a fazer? Não é isso que significa a opção preferencial pelos mais pobres, que os católicos são chamados a assumir?

A peça “Elogio do Riso” traduz a homenagem da atriz Maria Rueff ao “parente pobre das artes” e é, também, um testemunho eloquente da sua opção preferencial pelos pobres. Faz rir, e faz pensar, como é próprio da comédia.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

A dignidade humana em tempos da IA

Os avanços tecnológicos, que se sucedem a um ritmo vertiginoso, estão entre as grandes preocupações do Papa desde o início do seu pontificado. No dia seguinte à eleição, no primeiro encontro com os cardeais, Leão XIV explicou que escolheu o nome “Leão” por ver semelhanças entre o nosso tempo e o final do século XIX, quando Leão XIII enfrentou os desafios da primeira grande revolução industrial.

Se então a Igreja foi chamada a abordar a questão social, hoje é desafiada a “responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial (IA), que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”, afirmou então o Papa aos cardeais. Leão XIV reconhece “que o desenvolvimento tecnológico trouxe, e continua a trazer, benefícios significativos para a humanidade, particularmente nos campos da medicina e da saúde”. Escreveu-o numa mensagem dirigida aos participantes num congresso internacional, subordinado ao tema “IA e Medicina: o desafio da dignidade humana”, que hoje se conclui em Roma.

Ainda assim, o Papa advertiu que, “para garantir um verdadeiro progresso, é imperativo que a dignidade humana e o bem comum continuem a ser prioridades sólidas para todos, tanto para os indivíduos como para as entidades públicas”.

Os desafios colocados por esta nova revolução tecnológica — e, em particular, pela evolução acelerada da IA — exigem da Igreja lucidez para acolher as suas potencialidades e espírito crítico para discernir os seus riscos. A Igreja é chamada de novo a propor a sua doutrina social em defesa da dignidade humana e do bem comum, frequentemente ameaçados pela lógica do lucro que tende a marcar estes períodos de profundas transformações.


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A escola católica nasceu para os pobres

Escola católica na aldeia de Loli, no sul do Nilo Branco, Sudão central
Foto de Michael Freeman retirada daqui

As escolas católicas têm na sua génese a preocupação com a instrução e a educação dos mais pobres. Leão XIV recordou-o na encíclica “Dilexi Te”, ao fazer o percurso da preocupação da Igreja com os desfavorecidos. “Inspirada no exemplo do Mestre [...] a Igreja assumiu como missão formar as crianças e os jovens, especialmente os mais pobres, na verdade e no amor”. Desde o final do século XVI, foram várias as congregações que surgiram com essa preocupação.

Na Encíclica o Papa referiu S. José Calasanz, o qual, “impressionado pela falta de instrução e formação dos jovens pobres da cidade de Roma, deu vida à primeira escola pública popular e gratuita da Europa”. A que se seguiu S. João Baptista de La Salle, que “fundou os Irmãos das Escolas Cristãs, com o ideal de lhes oferecer ensino gratuito, formação sólida e ambiente fraterno”. O Papa lembrou também, entre outros, S. Marcelino Champagnat, fundador dos maristas, e S. João Bosco, dos salesianos. Ambos estiveram imbuídos do mesmo espírito de possibilitar o acesso à educação em contextos que ela era um privilégio de poucos.

O Papa voltou a este tema na carta apostólica “Desenhar novos mapas de esperança”, que comemora o 60º aniversário da declaração do Concílio Vaticano II sobre a educação cristã. Leão XIV assinou esse documento na abertura do Jubileu do Mundo Educativo a 27 de outubro, no Vaticano. Neste documento regressa ao que já tinha escrito na sua primeira encíclica, e sublinha, mais uma vez, que a Igreja é desafiada a ir “onde o acesso à educação é ainda um privilégio”.


quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Intolerância católica findou há 60 anos

A Nostra Aetate (em latim, "No nosso tempo") é a Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não Cristãs, aprovada e promulgada pelo Papa Paulo VI em 28 de outubro de 1965, durante o Concílio Vaticano II. Foto retirada daqui
Quando alguém está convencido que está na verdade e que o erro deve ser combatido, então não há espaço para o diálogo. Foi o que impediu durante séculos o diálogo inter-religioso no interior da Igreja Católica.

Felizmente, o Concílio Vaticano II consegui superar esse impedimento quando procurou olhar para as outras religiões com respeito e reconhecer o que nelas é “verdadeiro e santo”, com a aprovação da Declaração “Nostra aetate” sobre a Igreja e as religiões não-cristãs. Fez ontem, precisamente, 60 anos.

Essa data foi assinalada no Vaticano com um evento em que, segundo a agência Ecclesia, participaram líderes e representantes do judaísmo, islamismo, hinduísmo, jainismo, sikhismo, budismo, zoroastrismo, confucionismo, taoísmo, xintoísmo e religiões tradicionais.

Foi há sessenta anos que se suprimiu a oração pelos pérfidos judeus, na Sexta-feira Santa. Eram assim classificados por terem matado Jesus. Mas mais importante do que essa subtil, ainda que significativa, mudança, foi a condenação explícita da “Nostra aetate” de todas as “manifestações de antissemitismo”.

O Concílio desafiou os católicos a esquecerem “as discórdias e ódios” do passado e a olhar para os muçulmanos com estima. É certo que, nos tempos que correm, o fundamentalismo islâmico não está a ajudar a sarar essas feridas do passado...

Em relação ao hinduísmo e ao budismo, a declaração conciliar reconhece que também essas religiões refletem “um raio da verdade que ilumina todos os homens”. Encerra com a reprovação explícita de “toda e qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião”.

Quem, hoje – ainda que se apresente como um católico fervoroso – promove narrativas xenófobas ou racistas, e as difunde pelas redes sociais, não está em comunhão com a doutrina conciliar.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Nativos digitais que se tornam “offliners”

Os nativos digitais começam a sentir atração por atividades em que a presença das tecnologias seja reduzida. Aqueles que nasceram e cresceram num ambiente digital e que, por isso, têm dificuldade em imaginar um mundo sem telemóvel, sem videojogos, sem Internet ou redes sociais, querem experimentar esse mundo, nem que seja por uns dias.

Esta é uma razão que explica a adesão que se tem verificado entre os alunos do Instituto Politécnico de Bragança (IPB) a uma proposta da respetiva capelania para passarem um fim-de-semana sem telemóvel e desconectados das redes sociais: o “Offline Weekend”. Já é a segunda edição, em poucos meses, com as inscrições de ambas a ultrapassarem a meia centena.

Os estudantes referem outras motivações para se inscreverem nesta atividade. Começam a perceber que se sentem viciados e que precisam de um tempo de desintoxicação. Estas tecnologias, que prometiam aproximar as pessoas, têm afinal provocado maior isolamento e dificultado a interação social.

Quando as tecnologias são silenciadas, então os estudantes podem escutar-se melhor e aceder à sua interioridade. Verificam como é gratificante conversar e conviver com os outros. Como é tão ou mais divertido jogar cartas ou jogos de tabuleiros, adivinhar charadas ou desafios de palavras. 

É certo que uma centena num universo de dez mil alunos do IPB é pouco. Contudo, são um sinal de que há nativos do digital que estão abertos a explorar outros mundos. Destes foram selecionados apenas trinta para participar no “Offline Weekend” anterior. Todos saíram dinamizados para desafiar amigos e familiares a experimentarem um dia sem telemóvel. Alguns já promoveram iniciativas offline entre eles.

Os nativos digitais estão, assim, a converterem-se em “offliners”. Esperemos que não fundamentalistas, pois a digitalização tem imensas virtualidades.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Que Leão consolide Francisco!

Muita da opinião publicada dá conta de uma deceção com a atuação de Leão XIV. Teme-se que não consiga dar continuidade à dinâmica introduzida por Francisco. Que seja um Papa apagado, sem a chama e a determinação do seu antecessor.

Ainda é cedo para avaliar aquilo que vai significar para Igreja e para o mundo o pontificado do atual Papa. Contudo, Leão já deu sinais suficientes de que pretende continuar vários pontos da agenda de Francisco e, em determinados aspetos, até tem sido mais incisivo do que ele.

Disso é bom exemplo a sua primeira exortação apostólica Dilexi te (Eu te amei), sobre o amor aos pobres. Leão assumiu o título e o esquema deixado por Francisco e deu-lhe o seu cunho pessoal. Sendo natural que revele continuidade com o pensamento do seu antecessor, surpreendeu pela clareza e pelo arrojo.

Francisco ergueu a voz contra uma “economia que mata”. Leão diz que é necessário denunciar a “ditadura de uma economia que mata”. Francisco fez dos pobres a sua preocupação primordial. Leão questiona na Dilexit te “por que razão muitos continuam a pensar que podem deixar de prestar atenção aos pobres?”, quando a Bíblia, a práxis da Igreja, o seu magistério e, particularmente, a sua doutrina social, são tão claros em relação a esta matéria.

O Papa dedica cerca de dois terços da exortação a recordar o papel social da Igreja ao longo de vinte séculos de história e a relevância da sua doutrina social. É uma bela síntese que Leão remata com o alerta: “Permanecer no mundo das ideias e das discussões, sem gestos pessoais, frequentes e sinceros, será a ruína dos nossos sonhos mais preciosos” (nº 119).

A Igreja e o mundo anseiam por esses gestos concretos de Leão XIV, que confirmem o que já se vislumbra nas suas palavras: o seu empenho em levar por diante e consolidar a visão e a dinâmica de Francisco.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 15/10/2025)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Leão XIV respondeu como Jesus

Papa conversa com os jornalistas - Castel Gandolfo   (@VaticanNews)
A uma pergunta farisaica, Leão XIV respondeu ao jeito de Jesus. Conta o jornal digital 7Margens que há dias, quando o Papa respondia a jornalistas, a cadeia de televisão EWTN News – conhecida por posições integristas – questionou-o sobre uma polémica que tem agitado a igreja norte-americana.

O cardeal Blase Cupich, de Chicago, decidiu atribuir um prémio ao senador democrata Dick Durbin pelas suas posições pró-imigração. Esta homenagem foi criticada pelos católicos norte-americanos pró-vida pelo facto de o senador ter apoiado iniciativas legislativas contra a criminalização do aborto. Alguns deles apoiam a perseguição aos imigrantes promovida pela administração Trump e defendem a pena de morte. Se o Papa dissesse que concordava com o prémio seria criticado por, ao contrário do que defende a doutrina católica, branquear posições pró-aborto. Se discordasse do prémio, estaria a deixar-se condicionar pelas posições rígidas desses católicos.

Também Jesus Cristo, segundo os Evangelhos, foi confrontado com questões que não procuravam esclarecer uma situação, mas apenas causar-lhe embaraço e reunir argumentos para o condenar. Foi o caso da mulher apanhada em flagrante adultério: perguntaram a Jesus se devia ser apedrejada de acordo com a Lei de Moisés, ou perdoada segundo a misericórdia que pregava. Jesus respondeu. “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra” (Jo 8, 1-11).

Leão XIV respondeu à questão que lhe foi colocada questionando se é possível um católico ser contra o aborto e a favor da pena de morte ou do “tratamento desumano” de imigrantes? Tal como Jesus, percebeu a intenção da pergunta: conduzi-lo a um beco sem saída. Mas o Papa não se deixou encurralar, devolvendo a provocação com uma chamada de atenção aos católicos que se dizem pró-vida, mas que só a defendem no que lhes convém.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Ser cristão é não escorraçar migrantes

É provocatória a mensagem de Leão XIV que propõe os migrantes e refugiados como "missionários da esperança", tendo em conta a desconfiança com que são olhados no Mundo de hoje. Mas, em boa verdade, a provocação vem de Francisco, uma vez que usou esta fórmula como tema do 111.º Dia Mundial do Migrante e Refugiado, que a Igreja Católica celebra no próximo domingo.

"Num Mundo obscurecido por guerras e injustiças, mesmo onde tudo parece perdido, os migrantes e refugiados erguem-se como mensageiros de esperança", propõe o atual Papa. E acrescenta: "A sua coragem e tenacidade são testemunho heroico de uma fé que vê além do que os nossos olhos podem ver e que lhes dá força para desafiar a morte nas diferentes rotas migratórias contemporâneas".

Excelente síntese. Não é assim, porém, que os migrantes são tratados na discussão da Lei da Imigração, em Portugal. Nem mesmo o facto de contribuírem para o aumento da receita da Segurança Social e de não serem a causa do aumento da criminalidade os iliba das acusações de se aproveitarem dos nossos apoios sociais e de serem um perigo para a nossa segurança. A discussão da Lei de Estrangeiros concentrou-se no controlo da sua entrada e não cuida da sua permanência, como deveria. Preocupa-se mais com a sua expulsão do que com a boa integração.

Até os católicos se deixam seduzir pelos discursos populistas e não escutam os papas, este e o anterior. Francisco deixou quatro verbos que devem orientar a resposta da Igreja às migrações: acolher, proteger, promover e integrar. Nenhum deles é "dificultar" o acesso e "expulsar".

É fácil produzir legislação para controlar a entrada de estrangeiros e fazer deles o bode expiatório de todos os males do país. Difícil é acolher e integrar todos aqueles que são imprescindíveis ao funcionamento da economia e da sociedade portuguesa.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A porta entreaberta de Leão XIV

Na sua primeira entrevista, Leão XIV falou sobre o futuro da Igreja e o papel que o Papa é chamado a desempenhar. As reações que suscitou foram muito díspares. Entre os imobilistas, que Francisco classificou como "retrocedistas", tanto se aplaudiu a entrevista do Papa como esta foi acolhida com apreensão. Seguindo a categorização bergogliana, os "avançadistas" tiveram as mesmas reações porque leram as palavras de Leão no sentido contrário.

Os primeiros alegraram-se por acharem que Leão XIV colocou um travão às reformas introduzidas por Francisco, suscitando preocupação entre os segundos. Com aqueles que interpretaram que o Papa não fecha a porta, por exemplo, à ordenação de mulheres ou à reforma da Cúria iniciada por Francisco, aconteceu o inverso.

Na verdade, a entrevista revelou preocupações e orientações específicas do atual Papa, ao mesmo tempo que escondeu outras. Clarifica que o preocupa a polarização, tanto no Mundo como na Igreja. Escolhe como desígnio a unidade da Igreja e a criação de pontes entre os polos opostos. Se for bem-sucedido, honrará o título de Sumo Pontífice, que significa o supremo fazedor de pontes.

Com essa preocupação como pano de fundo, Leão XIV deixa a porta entreaberta, tanto para avançar como para recuar em relação às questões mais complexas que terá de afrontar. É este posicionamento que deixa intranquilos uns e outros, porque não se percebe para que lado é que o Papa irá pender.

O Papa, contudo, abre uma grande porta de saída, que é a sinodalidade: recorre a ela para responder, nomeadamente, à questão da dignificação do papel da mulher na Igreja. Se, de facto, Leão XIV implementar a sinodalidade como pretendia Francisco, então nada haverá a recear: tudo se realizará conjugando diversidade com comunhão, decisão com participação e congregar com evangelizar.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 24/09/2025)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Leão entre a missa em latim e os sem-terra

Começa a ficar claro que Leão XIV é um Papa desconcertante. Tanto dá sinais de acolhimento de posições classificadas como conservadoras, como se coloca ao lado daqueles que são rotulados como progressistas.

Na semana passada os tradicionalistas rejubilaram com a notícia, ainda não confirmada, de que o Papa Leão terá autorizado o cardeal Burke a celebrar a missa tridentina em latim na Basílica de S. Pedro, no próximo mês de outubro, algo que o seu antecessor não permitia desde 2022.

Este domingo, porém, o Papa presidiu a uma celebração em que se recordaram os mártires do século XXI. Destacou o exemplo de três, dos 1600 identificados pela “Comissão para os Novos Mártires” instituída por Francisco em 2023. A primeira referência foi para a “força evangélica da Irmã Dorothy Stang, empenhada na causa dos sem-terra na Amazónia”, assassinada em 2005 em Anapu, no Brasil, por enfrentar os latifundiários e madeireiros que estão a desmatar a floresta amazónica.

Em sua homenagem, na igreja de S. Luzia em Anapu, foi pintado um painel que serve de fundo ao altar.  Ao centro aparece crucificado um trabalhador sem-terra, ladeado pela Ir. Dorothy e pelo padre Josimo, também assassinado em 1986 no Maranhão. Vinte anos depois do assassinato da Ir. Dorothy, este painel foi tapado porque incomoda aqueles que não se reveem na sua luta e que agora controlam essa comunidade.

Ao destacar o exemplo da Ir. Dorothy o Pontífice não terá agradado aos que preferem colocar-se ao lado dos poderosos, em vez de seguirem a opção preferencial pelos mais pobres, como propõe a Doutrina Social da Igreja.

Aquilo que vai transparecendo da atuação de Leão XIV é a sua preocupação em salvaguardar a unidade da Igreja. Amanhã sai a sua primeira entrevista. Esta poderá esclarecer, ou ainda não, qual é o rumo que o Papa pretende tomar.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Os primeiros santos de Leão são jovens

Carlo Acutis (1991-2006) e Pier Giorgio Frassati (1901-1925)
Leão XIV canonizou os seus primeiros santos este domingo: Pier Giorgio Frassati e Carlo Acutis. Canonizar um santo não significa que ele passe a ser santo, pois já o era: é a Igreja a reconhecer que a sua vida é um exemplo de santidade.

Estes novos santos têm em comum terem morrido muito jovens. Frassati morreu de poliomielite com 23 anos; Acutis de leucemia, com apenas 15. Apesar das suas curtas vidas, podem ser apresentados a todos os cristãos como exemplos de santidade, particularmente aos mais jovens.

Tanto Frassati como Acutis foram rapazes em tudo semelhantes aos jovens do seu tempo, com os mesmos passatempos e ocupações, alegrias e anseios. O primeiro destacou-se pela atenção às famílias mais pobres. O segundo pela utilização da Internet para divulgar a sua fé, especialmente os milagres eucarísticos que foi conhecendo pelo mundo fora. Foi com esse objetivo que Acutis passou por Portugal: visitou Santarém, local onde se verificou um milagre eucarístico, e aproveitou para passar por Fátima.

Ao propor estes novos santos ao catolicismo global, a Igreja está a sublinhar que o caminho da santidade não é algo inacessível. Está ao alcance de todos os que na sua vida se descobrem amados por Deus e procuram ser consequentes com essa vivência, aproveitando todas as oportunidades para o testemunhar.

Todos os cristãos são chamados à santidade. Ou melhor: no fundo, esse é o objetivo de vida de todos os homens e mulheres, embora o denominem de outra forma. Todos procuram a realização pessoal e a felicidade. A grande diferença é que um cristão acredita num Deus que nos amou primeiro e que quer que todos sejamos felizes para sempre.

O cristão realiza-se a dar testemunho desse amor no serviço aos outros. Foi o que fizeram Frassati e Acutis, como tantas mulheres e homens santos ao longo da história.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 10/09/2025)

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Igreja na prevenção dos incêndios

Quando a floresta está a arder devem concentrar-se todas as forças no combate aos incêndios. Depois é que se devem retirar as consequências, refletir e planear para prevenir que situações particularmente graves, como as que aconteceram este ano e em anos anteriores, não se voltem a repetir.

Todos sabem que a prevenção é mais eficaz e menos dispendiosa do que o combate às chamas. Contudo, continua-se a negligenciar a floresta e a esquecê-la sempre que ela não arde. Só quando ela é fustigada pelos incêndios e desaparece é que se acorda.

Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco foi sensível ao clamor da irmã Terra “contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (nº2). Apelou ao envolvimento de todos e deixou-nos sugestões e desafios para nos envolvermos no cuidado da casa comum, o que incluí o património florestal.

Nesta encíclica o antigo Papa insistiu que a natureza não é apenas um recurso para explorar, mas parte de um bem comum que exige proteção e gestão sustentável. Propôs uma educação e consciência ecológicas. A Igreja, segundo Francisco, tem a missão de formar consciências: ensinar comunidades, fiéis e famílias a respeitar o meio ambiente, a usar os recursos com prudência e a prevenir comportamentos de risco.

Sozinha, contudo, a Igreja pouco pode fazer. É chamada a envolver-se num trabalho em rede com a sociedade civil e as autoridades. O seu papel primordial, como já adiantou o Papa Leão XIV, será promover o voluntariado e a solidariedade no interior das comunidades locais.

Perante a tragédia dos incêndios que assolou Portugal, a Igreja nacional é convocada à fidelidade à Laudato Si’. Deve, por isso, delinear e colaborar em iniciativas que corrijam a ausência de gestão das florestas e promovam a prevenção dos incêndios.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Líbano será a primeira viagem de Leão XIV

Leão XIV convocou os católicos para uma jornada de oração e de jejum pela paz na sexta-feira passada. É evidente que os católicos acreditam na força das suas preces dirigidas a Deus pela paz. Contudo, não basta.

A paz é uma das prioridades deste Papa. Logo no início do seu Pontificado, nas primeiras palavras que dirigiu à multidão da varanda de S. Pedro, desejou “uma paz desarmada e uma paz que desarma”. Nesta terça-feira o Vaticano anunciou que o tema da primeira mensagem de Leão XIV para o Dia Mundial da Paz, que a Igreja Católica celebra no primeiro dia de cada ano, será o mesmo: “A paz esteja com todos vós: rumo a uma paz ‘desarmada e desarmante’”.

Entretanto, a BBC noticiou que a Santa Sé está a preparar uma visita de Leão XIV ao Líbano, que será a sua primeira viagem internacional. Tanto João Paulo II como Bento XVI visitaram o Líbano. Curiosamente, esse país não foi visitado por Francisco.

“O Líbano é um país multicultural e multirreligioso e é um lugar de diálogo”, recordou o arcebispo maronita libanês Paul Nabil El-Sayah, em declarações à BBC. “É um dos raros ambientes onde muçulmanos e cristãos vivem juntos e se respeitam”, pelo que, ao escolher este país para a sua primeira viagem apostólica, o Papa “envia uma mensagem para a região”, conclui o arcebispo Sayah.

Dada a proximidade do Líbano com a Faixa de Gaza, é evidente que as palavras do Papa procurarão ter efeito no conflito que envolve Israel e a Palestina. Para tal se verificar, é importante que Leão XIV formule, nas palavras ou nos gestos, algo impactante.

A primeira viagem de um Papa é uma oportunidade única para comunicar o que considera relevante no mundo em que atua, como aconteceu com a ida de Francisco a Lampedusa. Leão XIV saberá aproveitar a visita ao Líbano para defender a paz e promover a reconciliação entre os povos.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Leão XIV e a paz no Mundo e na Igreja

É habitual fazer-se a avaliação dos primeiros cem dias de um Governo, de um presidente e até de um Papa. Os cem dias da eleição de Leão XIV ocorreram no passado dia 16.

No dia anterior, um dia muito significativo para a Igreja Católica, no final da oração do angelus, o Papa confiou "à intercessão da Virgem Maria, Assunta ao Céu, a nossa oração pela paz", um tema presente desde o início do seu pontificado. No dia 17, domingo, celebrou a eucaristia e almoçou com cem pessoas em situação de vulnerabilidade social, no Borgo Laudato Si", em Castel Gandolfo. Nesta iniciativa, Leão XIV faz alusão a duas das principais preocupações de Francisco: os pobres e o cuidado da criação.

Os primeiros cem dias de Francisco, com os gestos que teve, as palavras que proferiu e as decisões que tomou, foram um verdadeiro ciclone na Igreja. A escolha do nome que traduz a atenção aos mais pobres; a viagem a Lampedusa para chamar a atenção para o problema da imigração; a nomeação do colégio dos cardeais para o ajudarem no governo da Igreja, entre outras, clarificaram as suas principais preocupações e traduziram o seu ímpeto reformador da instituição que começou a liderar.

Já os primeiros dias do pontificado leonino foram bem mais serenos, em comparação com o seu antecessor. Contudo, deu para perceber que a paz é uma das suas preocupações, bem como dar continuidade a reformas introduzidas por Francisco.

Em tempos em que até a União Europeia tem de se esforçar para ter peso em negociações de paz, não será fácil para o Papa, para além de rezar pela paz, dar relevância diplomática à Santa Sé. Será também uma tarefa árdua pacificar a Igreja, conciliando os que se opõem às reformas projetadas por Francisco com os que são seus acérrimos defensores.

Para o bem da Igreja e do Mundo, deseja-se a Leão sucesso em ambos os esforços.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Na Igreja somos todos estrangeiros

Na Igreja, ou não há estrangeiros, ou somos todos estrangeiros. Não há estrangeiros, porque todos temos a mesma dignidade de filhos de Deus. Pelo batismo "todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus", escreve S. Paulo aos Gálatas (3, 26). "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus", conclui o Apóstolo dos gentios (3, 28).

Por outro lado, todos somos estrangeiros na terra, porque acreditamos num reino outro, aonde somos chamados a viver para sempre. "A nossa pátria está nos céus", diz S. Paulo aos Filipenses (3, 20).

O JN do domingo passado destacava na manchete que os "Padres estrangeiros ganham terreno na Igreja portuguesa". Ainda que não faça sentido do ponto de vista cristão, aceita-se o título do JN no contexto jornalístico que tem marcado a atualidade: a nova lei de estrangeiros.

Seria interessante perceber as motivações que levaram estes padres a escolher o nosso país para desenvolverem a sua atividade pastoral. É louvável quando o fazem motivados por uma vocação missionária, devidamente discernida e orientada para servir a Igreja onde os seus superiores assim o entenderem.

Já quando saem dos seus países por interesses meramente pessoais, à procura de uma situação mais lucrativa, então, em vez de serem uma solução para a escassez de clero, acabam por se tornar, eles próprios, em mais um problema para as dioceses que os acolhem, a somar a tantos outros. Para a falta de clero há outras soluções, como "a ordenação de membros das comunidades com provas dadas", e outras que o pe. Jorge Cunha, professor de Teologia, elencou ao JN.

Acolher padres estrangeiros não deverá ser, por isso, um expediente para resolver a escassez de clero. Mas é uma excelente forma de promover o dinamismo missionário característico da Igreja.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

As questões que inquietam os jovens


Leão XIV encontrou-se com mais de um milhão de jovens em Tor Vergata, Roma, no domingo passado. Foi a maior multidão a que teve de se dirigir até agora. Tendo este encontro decorrido no âmbito do Jubileu da Esperança, o Papa acolheu os anseios próprios da juventude e desafiou-os a contagiarem com a sua fé todos aqueles com quem se cruzarem na vida.

O Papa durante a homilia começou por falar em italiano, depois passou pelo espanhol, pelo inglês, e, para terminar, falou novamente em italiano. São as três línguas que domina. O inglês é a sua língua materna. Porque passou vinte anos no Perú, fala bem o espanhol. Nos últimos anos tem vivido em Itália, o que o levou a desenvolver o italiano.

Abordou as aspirações dos jovens a “algo mais” em italiano: “Sentimos uma sede tão grande e ardente que nenhuma bebida deste mundo pode saciar”. Já em espanhol recordou as palavras do Papa Francisco em Lisboa, na Jornada Mundial da Juventude: “Não nos alarmemos se nos encontramos intimamente sedentos, inquietos, incompletos, desejosos de sentido e de futuro”.

Foi em inglês, porém, que Leão XIV identificou claramente as questões que traduzem a busca de verdade que habita o coração dos jovens: “O que é a verdadeira felicidade? Qual é o verdadeiro sentido da vida? O que nos pode libertar de sermos capturados pela falta de sentido, pelo tédio e pela mediocridade?”

A Igreja tem como primordial missão levar as pessoas a encontrarem-se com Jesus Cristo, para nele descobrirem respostas para as questões que as habitam. Aqueles que vão trilhando esse caminho encontram, naturalmente, formas de dar testemunho da sua experiência, contagiando outros e desafiando-os a fazerem essa descoberta. Se os jovens não descobrem na Igreja resposta para as suas inquietações, é porque nela não encontram testemunhos credíveis para tal.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Mitos nos dis­cur­sos sobre a pobreza

É sur­pre­en­dente a man­chete desta segunda-feira do JN que os “bene­fi­ci­á­rios do RSI são cada vez menos e o valor médio do sub­sí­dio é de 155 euros”. Não é essa a sen­sa­ção que temos quando pas­sa­mos pelas redes soci­ais. Parece que a mai­o­ria dos por­tu­gue­ses não que­rem tra­ba­lhar por­que rece­bem o ren­di­mento social de inser­ção (RSI). “O mito de que há muita gente que vive à custa do RSI, vul­gar­mente conhe­cido como ren­di­mento mínimo, é antigo e cada vez mais facil­mente des­mon­tado pelos núme­ros da Segu­rança Social e da exe­cu­ção orça­men­tal con­sul­ta­dos pelo JN”, escla­rece este jor­nal.

Há um outro mito que con­ta­mina qual­quer abor­da­gem séria da pobreza. “Desde o tempo da Lei das Ses­ma­rias [com­ba­ter a crise agrí­cola e o des­po­vo­a­mento rural] que vem esta ideia de que os pobres são pobres por­que não que­rem tra­ba­lhar, não fazem esfor­ços para sair da situ­a­ção, o que é com­ple­ta­mente con­tra­di­tado pela pró­pria estru­tura e cate­go­ri­za­ção dos bene­fi­ci­á­rios de RSI”, explica ao JN o soci­ó­logo Luís Capu­cha.

São notí­cias como esta que aju­dam a des­mon­tar as fal­si­da­des de dis­cur­sos polí­ti­cos que, para além de domi­na­rem as redes soci­ais, estão a inqui­nar a opi­nião pública. É mesmo muito difí­cil ven­cer a men­tira mui­tas vezes repe­tida.

Já dizia Goeb­bels, o minis­tro da pro­pa­ganda nazi, que “uma men­tira dita mil vezes torna-se ver­dade”. Sobre­tudo nes­tes tem­pos em que essa men­tira se dis­se­mina expo­nen­ci­al­mente, já não mil, mas milhões de vezes pelas redes soci­ais. É muito difí­cil a ver­dade tri­un­far.

Tam­bém não é fácil con­tra­riar o dis­curso popu­lista por­que mui­tas pes­soas, perante as difi­cul­da­des que enfren­tam, pre­fe­rem acre­di­tar que são os pobres, os imi­gran­tes ou os refu­gi­a­dos os cau­sa­do­res dos seus pro­ble­mas no acesso à edu­ca­ção, à saúde ou ao emprego. Não há pior cego do que aquele que não quer ver. Ou que decide ser míope.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Estimar os idosos até ao fim

A sociedade ocidental tende a valorizar o papel dos avós e dos idosos, ainda que por vezes o faça numa perspetiva meramente utilitarista.

Eles são muito úteis para irem buscar os filhos às escolas ou às atividades extracurriculares. Ou para acompanharem os netos enquanto os pais estão ocupados no trabalho. Mais tarde, quando as crianças crescem e os pais já não precisam desse apoio, os idosos começam a perder as suas capacidades de mobilidade e autogoverno: nessa altura passam a ser eles a necessitar de acompanhamento. Muitas vezes, porém, são “despejados” num lar e votados ao abandono.

Para chamar a atenção para isto o Papa Francisco instituiu o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que se passou a celebrar no domingo mais próximo de 26 de Julho, o dia em que a Igreja Católica festeja S. Joaquim e S. Ana, pais de Maria e, portanto, avós de Jesus.

Esta efeméride celebra-se, pela quinta vez, no próximo domingo. Na mensagem que lhe dedica, Leão XIV pede que se promova a libertação dos idosos “da solidão e do abandono”. O Papa constata que “as nossas sociedades estão a habituar-se, com demasiada frequência, a deixar que uma parte tão importante e rica do seu tecido social seja marginalizada e esquecida”. É preciso “trabalhar por uma mudança que devolva aos idosos a estima e o afeto”.

Os idosos não devem ser descartados quando as suas forças diminuem e mais precisam de atenção. Não devem ser afastados do ambiente familiar, a não ser que tal seja humanamente impossível. Também os jovens precisam de contactar com a sua fragilidade e decrepitude para terem uma conceção mais ajustada do que é a vida.

O ser humano não vale só pelo que produz, mas pelo que é ao longo de todo o seu ciclo. A sua dignidade é inviolável e deve ser protegida quando está mais frágil. As velas ardem até ao fim.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 23/07/2025)

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Os que vão, e os que não vão, à missa

Há políticos que fazem questão em dizer que vêm da missa e outros que se vangloriam de não ir missa. A estes não é exigido que estejam em sintonia com o Evangelho ou com o que o Papa e os bispos pregam. Porém, surpreendentemente, estão por vezes mais alinhados com posições da Doutrina Social da Igreja do que os primeiros. É o caso do acolhimento aos imigrantes.

No Evangelho aparecem diversas passagens em que Jesus exalta e promove os estrangeiros. Jesus elogia a fé da cananeia a quem cura a filha (Mt. 15, 21-29) e do centurião romano a quem cura o escravo (Lc. 7, 1-10). Uma samaritana, que encontra junto ao poço de Jacó, converte-se em sua apóstola (Jo. 4, 31-33). Na parábola que foi lida na missa deste domingo em todo o mundo, é também um samaritano que se compadece e presta assistência a um judeu assaltado e abandonado quase sem vida. Um sacerdote e um levita veem o seu estado de necessidade, mas ignoram-no (Lc. 10, 25-37).

Comentando essa parábola, Leão XIV denunciou que, por vezes, “consideramos nosso próximo somente quem está no nosso círculo, quem pensa como nós, quem tem a mesma nacionalidade ou religião. Porém, Jesus inverte a perspetiva, apresentando-nos um samaritano, um estrangeiro e herege, que se torna próximo daquele homem ferido. E pede-nos que façamos o mesmo”.

Em sintonia com o Papa, D. José Ornelas, bispo de Leiria–Fátima, defendeu que, num contexto “de discernimento e de legislação sobre os imigrantes”, a prioridade deve estar “no bem acolher”. E apelou a que não se caia “na ratoeira dos medos instrumentalizados, nem dos preconceitos manipulados, das evidências negadas”.

Tendo em conta o Evangelho e a doutrina social que dele decorre, o cristão não pode embarcar em discursos levianos que imputam ao estrageiro os problemas da nação e pretendem dificultar o seu acolhimento.