quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Falta coração ao Mundo

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi-se desenvolvendo ao longo de séculos no interior da Igreja Católica. Ganhou particular relevância a partir das experiências místicas da Santa Margarida Maria Alacoque, entre dezembro de 1673 e junho de 1675. O Papa Francisco publicou uma encíclica comemorativa dos 350 anos da última visão relatada por essa santa, a que deu o título “Dilexit nos” (Amou-nos), divulgada na passada quinta-feira.

O Papa propõe um aprofundamento e uma atualização desta devoção. Esclarece que “as visões ou manifestações místicas narradas por alguns dos santos que propuseram apaixonadamente a devoção ao Coração de Cristo não são algo em que os crentes sejam obrigados a acreditar como se fossem a Palavra de Deus” (n.º 83). Contudo, quis conferir a dignidade de encíclica - na hierarquia dos textos papais é a categoria mais importante - à reflexão sobre o amor humano e divino que traduz o Coração de Jesus. Está convencido, explica Francisco, que “falta coração” ao Mundo atual.

São interessantes as propostas do Papa para atualizar algumas práticas tradicionais da devoção ao Sagrado Coração, como é o caso da comunhão eucarística nas primeiras sextas-feiras de cada mês ou da adoração às quintas-feiras.

A encíclica abre com um capítulo em que o Papa esclarece o que se deverá entender pelo conceito de “coração” e desafia este “mundo líquido” a “regressar ao coração” (n.º 9). Este, entendido como “o centro mais íntimo” da pessoa, no qual confluem todas as “suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas” (n.º 21).

Falar do coração, ou do amor a ele associado, parece um tema desinteressante e gasto. O Papa teve a coragem de o abordar e de o repropor, destacando-o numa encíclica. Vale a pena gastar algum tempo a ler e deixar-se impregnar pelo primeiro capítulo deste texto.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Um frade que faz aquilo que prega

Timothy Radcliffe, frade dominicano, recém-nomeado cardeal
Foto: 
Mazur/catholicchurch.org.uk
Aquele que diz uma coisa, e faz outra, perde a credibilidade. É bem conhecida a expressão: “Bem prega frei Tomás: faz o que ele diz, não faças o que ele faz”. Assim se denuncia a incoerência eclesiástica. Parece que o frei Tomás referido no aforismo existiu mesmo – e que a frase até é do próprio.

Trata-se de um frade dominicano, frei Thomaz de Souza, o qual, no séc. XVI, foi confessor de Dona Catarina da Áustria, esposa de D. João III. Tendo acesso à corte, comprovou a imoralidade dos cortesãos que expunha nos seus sermões. Um dos fidalgos visados escreveu junto aos aposentos do frade: “Aqui mora frei Tomás, que bem diz e mal faz”. Frei Tomás terá acrescentado por baixo: “Fazei o que diz e não façais o que faz”.

Frei Tomás humildemente assume que terá as suas incoerências, as quais não retiram valor ao seu discurso. Não é essa a perspetiva do cardeal Jean-Claude Hollerich. Na abertura do Sínodo que decorre em Roma, na qualidade de relator-geral pediu aos participantes “coerência” entre a prática e o que se diz: “Caso contrário, as pessoas ouvirão as nossas palavras, mas não acreditarão nas nossas práticas, o que tornará o nosso património insignificante, corroendo-o lentamente”.

Frei Timothy Radcliffe, recentemente nomeado cardeal, também ele dominicano, na reflexão que dirigiu ao Sínodo referiu como se podem sentir intimidados os participantes menos habituados aos “títulos grandiosos e roupas estranhas”. Soube-se agora que pediu ao Papa que fosse dispensado de usar a “elaborada indumentária cardinalícia”, tendo o Papa acedido.

Timothy Radcliffe terá as suas incoerências, pois ninguém é perfeito, como reconhecia frei Tomás. Contudo, ao preferir o despojado hábito branco dominicano em vez dos requintados vermelhos cardinalícios, demonstrou que procura fazer aquilo que prega.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O cardeal duplamente franciscano

Cardeal Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus
Foto: Santuário de Fátima
O cardeal Leonardo Ulrich Steiner presidiu à peregrinação de outubro no Santuário de Fátima, que decorreu no passado fim de semana. Nasceu no Sul do Brasil, no estado de S. Catarina, onde se concentraram muitos emigrantes alemães no século passado. Como o seu nome indica, tem ascendência alemã. Pertenceu à Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, antes de ser bispo.

Desde 2019, o cardeal Steiner é arcebispo de Manaus, na Amazónia. É um homem do Sul que assumiu como suas as preocupações dos homens e mulheres da Amazónia, sobretudo dos indígenas. De tal forma que a Câmara Municipal de Manaus lhe conferiu, em junho deste ano, o título de “cidadão manauara”. Na cerimónia em que o cardeal foi homenageado com esse título, foi destacada a rapidez com que ele conquistou a simpatia de todos. Manaus descobriu nele um bispo que se faz presente “no meio do povo de rua, no cemitério ou num caminhão descarregando cilindros de oxigênio durante a pandemia da Covid-19”.

O seu timbre franciscano transpareceu bem nas palavras que dirigiu à multidão, reunida na Cova da Iria. No final da procissão de velas expressou a sua preocupação, tão franciscana, com a degradação ambiental da Casa Comum. S. Francisco de Assis cantou e rezou o amor à criação, chamou irmãos a todos os seus elementos. O Papa, em sintonia com o nome do santo que adotou, tem feito da ecologia uma das suas causas.

No dia 13, na homilia da missa, o cardeal disse que veio a Fátima rezar “pelos indígenas”, para que “cesse o desmatamento, termine a pesca predatória, desapareça o garimpo ganancioso, destruidor e predador”.

O cardeal Leonardo Steiner é um filho de S. Francisco. E é um bispo que tem “o cheiro a ovelhas” dos pastores que caminham com o seu povo, “por vezes à frente, por vezes no meio e outras atrás”. Como preconiza o Papa Francisco.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Mais cardeais na Ásia, menos na Europa

O Papa Francisco nomeou 21 novos cardeais, 18 bispos e 3 padres. Receberão o barrete vermelho no dia 8 de Dezembro. O Colégio Cardinalício tem como principal missão eleger o Papa. Passa a ser constituído por 235 elementos, dos quais 141 com direito de voto (menos de 80 anos). Ultrapassa em muito o número dos 120 que a legislação em vigor recomenda. Porém, 15 destes ultrapassarão até ao final de 2025 os 80 anos. Serão, então, menos de 126 os eleitores.

Quando foi convocado o Conclave que viria a eleger o Papa Francisco, havia 207 cardeais, dos quais 117 abaixo dos 80 anos. Acabaram por nele participar 115.

As escolhas de Francisco, para além de ampliarem o número de cardeais eleitores, têm vindo a alterar a fisionomia do Colégio Cardinalício. Em 2013, foi eleito por cardeais de 48 países. Os eleitores saídos do próximo Consistório passarão a representar 72 países.

Entre 2013 e 2024, a Europa é o único continente em que o número de cardeais eleitores diminuiu. Passaram de 60 para 55. Em 2013, representavam quase metade do colégio eleitoral. Com a recente nomeação de novos cardeais, passarão a ser um pouco mais de um terço.

A Ásia é onde se verificou o maior aumento, passaram de dez para 26 cardeais. Em 2013, representavam seis países, agora 17. Segue-se África, com um aumento de 11 para 18 cardeais e de dez para 17 países. Nas Américas o número de cardeais aumentou de 33 para 38 e na Oceânia de 1 para 4.

Todos estes números manifestam a visão estratégica de Francisco e acompanham a evolução do número de católicos nos diferentes continentes. Na Europa os católicos têm diminuído e na África têm aumentado. A Ásia é o continente com o maior potencial de crescimento. 

Justifica-se o maior investimento do Papa na Ásia, sem negligenciar os países africanos, que se seguem nas suas escolhas cardinalícias.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O segredo das reformas estruturais

Estudantes da Universidade Católica de Lovaina
questionam o Papa sobre o papel da mulher na Igreja
O Papa Francisco foi olhado com desconfiança pelos conservadores e acolhido com esperança pelos progressistas. Os conservadores atacaram-no pelas iniciativas que preconizam uma maior abertura da Igreja. Ultimamente, são os mais progressistas que começam a condená-lo por avançar muito devagar – e até a considerá-lo “conservador”. Foi o que aconteceu sábado na visita à Universidade Católica de Lovaina.

Foi lida uma carta de professores e estudantes com questões como a desigualdade social, a crise climática e o papel das mulheres na Igreja Católica. Na resposta, o Papa disse que “não é o consenso nem são as ideologias que sancionam o que é caraterístico da mulher”. E destacou a centralidade da mulher no acontecimento salvífico, nomeadamente pelo “sim” de Maria que permitiu que Deus viesse ao mundo. Contudo, não avançou tanto como alguns desejavam.

Minutos após o Papa ter proferido essas palavras, a universidade divulgou um comunicado em que se lamentavam “as posições conservadoras expressas pelo Papa Francisco sobre o papel das mulheres”.

Os extremos tocam-se, pois, no ataque ao Papa.

Uns não entendem que uma Igreja fechada sobre si mesma, que não é sensível aos desafios que o mundo lhe coloca, é a negação de um Deus em que dizem acreditar. Outros pretendem que se avance tão rapidamente que nem valorizam os passos que o Papa já deu. Nomeadamente, ter colocado mulheres onde elas nunca estiveram, como o Sínodo dos Bispos.

Ainda não entenderam que este Papa lança processos, não com voluntarismo, mas com os métodos abertos e a velocidade lenta que são indispensáveis às grandes mudanças estruturais. Não se mudam 20 séculos numa década. Serão precisos alguns anos para que a reforma iniciada se concretize. É desta forma, com diálogo e o ritmo certo, que se alcançará o que muitas e muitos anseiam.