sexta-feira, 27 de maio de 2016

O ateu e o bispo

Marco Panella e o arcebispo Vicenzo Paglia
Foto retirada daqui
A amizade pode surgir entre pessoas que militam em campos diametralmente opostos, com opções nada compatíveis. As quais, todavia, não os impedem de desenvolver uma admiração e uma estima recíprocas.

A morte do fundador do líder do Partido Radical italiano de extrema-esquerda, Marco Panella, veio tornar mais conhecida uma dessas amizades improváveis. Um homem que se definia a si mesmo como “radical, socialista, liberal, federalista europeu, anticlerical, anti proibicionista, antimilitarista, não violento e gandhiano” era amigo do arcebispo Vicenzo Paglia, o atual Presidente do Pontifício Conselho para a Família. A quem até admitia que rezasse por ele.

Uma estranha amizade entre um libertino que defendia o divórcio a eutanásia ou a despenalização do aborto e um clérigo que se opõe frontalmente a tudo isso. Entre um ateu declarado e um crente confesso, mas que convergiam na defesa dos direitos humanos. E, cada um a seu modo, declaravam ter um espírito religioso.

D. Vicenzo Paglia reconheceu, numa entrevista ao “Corriere della Sera”, que apesar das divergências em algumas opções políticas, até o admirava por “gastar a vida em função dos ideais em que acreditava”. Algo que até levou o Papa Francisco a “apreciá-lo”. Um sentimento que era recíproco.

“Escrevo-te do meu quarto no último andar, perto do céu, para te dizer que, na realidade, eu estive contigo em Lesbos, quando abraçavas a carne torturada daquelas mulheres, daquelas crianças, e daqueles homens que ninguém quer acolher na Europa”, dizia Marco Panella, numa carta escrita na cama do hospital e entregue pelo amigo arcebispo ao Papa. Terminava essa carta com a expressão carinhosa italiana: “Ti voglio bene davvero tuo Marco” (Quero-te, muito, de verdade, o teu Marco).

Estas palavras, para além do afeto pelo Papa, demonstram bem que, para lá de tudo o que os separava, os unia a predileção pelos mais desprezados.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 27/05/2016)

sexta-feira, 20 de maio de 2016

As mulheres na Igreja

Papa Francisco na Assembleia
das Superioras das Congregações Religiosas
Foto da REUTERS retirada daqui
O papel da mulher na Igreja Católica continua a parecer secundário, apesar de nas suas assembleias serem a maioria e desempenharem nas comunidades tarefas relevantes. Isto deve-se ao facto de lhes ser vedado o acesso à ordenação e às instância em que muitas das decisões são tomadas, entre outras razões. O próprio Papa o reconheceu perante as superioras das congregações femininas reunidas em Roma.

Desafiado nesse contexto a criar uma comissão para esclarecer se, nos primeiros tempos do cristianismo, as mulheres já terão sido ordenadas diaconisas, o Papa aceitou o repto e até valorizou como “útil” esse esforço. De facto, há documentos da antiguidade cristã que referem as diaconisas, embora não seja claro se terão, ou não, recebido o sacramento da Ordem.

Até agora, tendo como base que entre as escolhas de Jesus para apóstolos não figura nenhuma mulher, assumiu-se que a Igreja não poderia ir além das decisões do seu fundador. Foi isso que levou João Paulo II a afirmar que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”.

Em relação a esta posição oficial do magistério, há quem não dê a questão por encerrada e contraponha que Jesus terá tomado essa opção numa concessão à cultura patriarcal em que viveu, embora o Evangelho registe vários gestos seus desafiantes e contracorrente. Por exemplo, quando permite a uma samaritana discutir com ele teologia, o que era impensável à época. Para estes, não são razões teológicas, mas sim razões culturais que impediram até hoje a Igreja de dar esse passo.

Veremos se a tal comissão irá comprovar a ordenação de diaconisas no passado. Se tal suceder, poder-se-á pensar em restaurar essa práxis e em dar mais um passo para garantir a paridade das mulheres no seio da Igreja Católica.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 20/05/2016)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

O sonho do Papa

Papa Francisco no Parlamento Europeu a 25/11/2014
Foto retirada daqui
A construção europeia atravessa tempos difíceis. O euroceticismo tem cada vez mais adeptos. A Grécia esteve com um pé de fora e o Reino Unido pondera o abandono do projeto europeu. É neste contexto que foi atribuído ao Papa Francisco o Prémio Carlos Magno, que distingue personalidades que contribuíram para a construção da União Europeia.

Habitualmente o Papa não aceita condecorações. Decidiu, porém, aceitar esta distinção “como um gesto para que a Europa trabalhe pela paz”.

Perante uma plateia em que se destacavam alguns conhecidos políticos europeus, o Papa recuperou preocupações suas que já havia mencionado na visita ao Parlamento Europeu. E questionou: “Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da liberdade? Que te sucedeu, Europa terra de poetas, filósofos, artistas, músicos, escritores? Que te sucedeu, Europa mãe de povos e nações, mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar a vida pela dignidade dos seus irmãos?” 

Com o olhar no passado, e tendo em conta as exigências do presente, o Papa propôs “um novo humanismo baseado em três capacidades: a capacidade de integrar; a capacidade de dialogar; e a capacidade de gerar”. Terminou o discurso com o seu sonho de uma “Europa jovem”, que cuide das crianças, dos jovens e dos idosos, “onde ser migrante não seja delito”. Uma Europa das famílias “que promova e tutele os direitos de cada um, sem esquecer os deveres para com todos”.

Para que o sonho se torne realidade são necessários líderes políticos da estatura dos “pais fundadores” do projeto europeu. Estadistas que consigam vencer os mesquinhos egoísmos nacionalistas e que tenham uma visão de longo prazo. Políticos diferentes das atuais lideranças, da esquerda à direita, que se limitam a gerir uma crise que não conseguiram antecipar, nem conseguem vencer. Que governam ao sabor de uma corrente adversa.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 13/05/2016)

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Pe. Telmo continua a voar nas alturas…


Pe. Telmo Batista Afonso (1929-2016)
Foto retirada daqui
O Papa Francisco, no famoso discurso à Cúria Romana nas vésperas do Natal de 2014, em que elencou as quinze doenças curiais, disse também: “Certa vez li que os sacerdotes são como aviões: só fazem notícia quando caem, mas há tantos que voam”.
Morreu um dos padres mais dedicados e, ao mesmo tempo, mais discretos da diocese de Bragança – Miranda: o Pe. Telmo Baptista Afonso, que voou bem alto durante toda a sua vida. Vivia e movia-se acima da lamentável e condenável coscuvilhice e maledicência eclesiástica, que demasiadas vezes se acantona e campeia nos corredores do poder, e a que, infelizmente, as dioceses não são imunes.
Nos últimos dias de vida confidenciou-me que nunca falou mal de um bispo. Quem com ele convivia pode testemunhar que ele preferia sempre realçar os aspetos positivos de uma pessoa, sacerdote ou não, do que os seus defeitos. Que habitualmente omitia.
Assumiu as mais destacadas missões na igreja brigantina. No início da sua vida sacerdotal foi professor e prefeito no seminário de Vinhais. Depois desempenhou as mesmas funções no seminário de Bragança. Foi diretor do Colégio de S. João de Brito, diretor espiritual dos Cursos de Cristandade, vigário geral e reitor do Seminário. Apesar do papel relevante que desempenhou na vida diocesana, desde os anos oitenta remeteu-se à função de humilde “cura de aldeia” na sua terra natal, o Zoio, e povoações serranas circunvizinhas.
A sua morte foi notícia no jornal diocesano. Mas a sua vida gasta ao serviço das pessoas, e na atenção às necessidades de todos, não mereceu qualquer destaque mediático. Foi um formador do Seminário dedicado aos seminaristas, de quem sabia o nome completo muitos anos depois de lhe terem passado pelas mãos.
Foi um capelão atento a todos soldados, particularmente aos mais necessitados. Nunca recebeu o salário a que tinha direito pela capelania do quartel de Bragança. Entregou-o, sempre na totalidade, para a Obra do Soldado. Visitava os presos. E, sempre que tinha algum paroquiano ou conhecido no hospital, imediatamente lhe prestava assistência. Antecipando-se mesmo ao capelão, não deixando nunca de lhe pedir autorização para o sacramentar, quando era caso disso. Comigo aconteceu por diversas vezes.
O Pe. Telmo continua agora a voar nas alturas adequadas à grandeza da sua alma. Recebe a retribuição, que tantas vezes rejeitou, pelo bem que fez ao longo dos seus 86 anos de vida…