domingo, 31 de agosto de 2014

Terrorismo interno

Foto retirada daqui
O Papa Francisco retomou, esta semana, as audiências na Praça de S. Pedro com críticas contundentes para o interior da Igreja. Regressou à temática das divisões entre os cristãos, que já abordou noutras circunstâncias, nomeadamente no encontro com os pentecostais.  Agora, porém, aplica-a ao interior das comunidades católicas e não tanto no âmbito do diálogo ecuménico.

A proposta do Papa foi uma reflexão sobre a “Igreja Una e Santa”. Recordou que “há tantos pecados contra a unidade; e não pensemos apenas nas heresias ou nos cismas, mas em faltas muito mais comuns, nos pecados ‘paroquiais’: com efeito, as nossas paróquias, chamadas a ser lugares de partilha e comunhão, infelizmente parecem marcadas por invejas, ciúmes, antipatias. Como se coscuvilha nas paróquias! Isto não é Igreja, não se faz! É verdade que isso é humano, mas não é cristão!”

São estas e outras críticas, acompanhadas por uma atitude de compreensão para com os que andam afastados, que entusiasmam muitos e incomodam alguns. Estes, aliás, têm promovido uma oposição silenciosa e sub-reptícia ao Papa muito mais perigosa que um atentado terrorista.

Um atentado terrorista faria dele um mártir das suas convicções e da renovação que propõe à Igreja e ao Mundo. Mas este terrorismo eclesiástico é muito mais perigoso, porque procura descredibilizar e esvaziar a dinâmica reformadora por ele introduzida.

“No início, criticaram-no pela simplicidade das suas roupas, depois pela sua liberdade litúrgica, mais tarde por causa da sua crítica ao sistema económico. Agora ficam incomodados com as visitas que faz aos seus amigos – é mau que tenha amigos, pior ainda se são judeus, muçulmanos ou pentecostais. Não gostam que ria, brinque, surpreenda, improvise, converse, telefone, em resumo, que haja humanamente”, escreveu Marco Velásquez Uribe, no sítio chileno “Reflexión y Liberación”.

Prossegue este autor: “A um nível mais elevado, e de maneira mais orgânica, estrutura-se uma oposição dogmática. Silenciosamente, vai ganhando força uma corrente teológica que, sem pudor, vai corrigindo os desejos reformistas do papa”.

O que se deseja é que tanto o terrorismo externo como o interno não consigam calar nem travar o Papa Francisco.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 29/08/2014)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Viagens papais com convidado especial

Foto retirada daqui
O Papa Francisco regressa da Coreia do Sul já com os olhos postos na Albânia, nos Estados Unidos e em Espanha. Confirmou esse programa na conferência de imprensa durante o voo de regresso. Nesse diálogo com os jornalistas alguns assuntos saltaram para o topo da atualidade, como as alusões ao bombardeamento norte-americano do autoproclamado Estado Islâmico, à sua esperança de vida – “dois ou três anos”, disse ele – e a hipótese de vir a resignar.

Vários outros temas, compreensivelmente, não mereceram o mesmo destaque. Na resposta a uma questão sobre as próximas viagens, o Papa revelou que, ainda este ano, irá à Albânia. Visitará aquele país por causa de os albaneses terem conseguido formar um governo de unidade nacional, com a participação de islâmicos, ortodoxos e católicos. Se ali foi possível, o Papa quer animar outros povos a fazerem o mesmo. Até entre nós, portugueses, não é fácil fazer um governo que coloque o interesse nacional acimas das estratégias político-partidárias....

Uma outra razão que o leva àquelas paragens é o facto de a fé ali se ter mantido, apesar de aquele ter sido o único país do bloco de Leste que incluía o ateísmo prático na sua Constituição. “Se tu ias à missa era anticonstitucional”, disse o Papa. Para além disso, recordou também, durante a vigência do regime comunista 1820 igrejas católicas e ortodoxas foram destruídas e outras foram transformadas em cinemas, teatros e salões de dança...

No próximo ano, atravessa o Atlântico para ir ao Encontro Mundial da Família em Filadélfia e, eventualmente, passar pelo Parlamento norte-americano e na sede das Nações Unidas. Depois seguir-se-á a visita ao Santuário de N. Sra. de Guadalupe, no México. E põe, ainda, a hipótese de aceder aos inúmeros convites para ir a Santiago de Compostela, em Espanha.

Por imposição do Papa, em todas as viagens fora de Itália a comitiva, para além dos habituais altos dignatários da Santa Sé, inclui pelo menos um funcionário de nível inferior. Nesta viagem à Coreia, por exemplo, foi convidado um telefonista do Vaticano. O Papa pretende, desta forma, demonstrar que para ele todas as pessoas são importantes, sobretudo as que, habitualmente, são menos consideradas.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 22/08/2014)

domingo, 17 de agosto de 2014

Os nossos "Franciscos"

Conferência de imprensa de apresentação da peregrinação anual
do migrante e refugiado ao Santuário de Fátima
Foto: Fatima.pt, retirada daqui
Os nossos bispos alinham o seu discurso com o do Papa Francisco e não se coíbem de criticar o capitalismo, os políticos e a falta de ética nos mercados.

D. António Francisco dos Santos, bispo do Porto, para além de ter o mesmo nome que escolheu o Papa, tem manifestado as mesmas preocupações pelos mais pobres nas palavras e em gestos, muito semelhantes. Ainda neste S. João do Porto escolheu as famílias mais desfavorecidas da Ribeira para com elas passar essas festividades.

Na homilia da missa da peregrinação anual do migrante e refugiado ao Santuário de Fátima, anteontem, não disse, como o Papa, que “a economia mata”. Mas deu o passo que se impõe, que é o de promover “uma economia de rosto humano e solidário e um sistema financeiro assente na verdade”.

Um outro Francisco – o frei Francisco Sales, diretor da Obra Católica Portuguesa para as Migrações – na conferência de imprensa de apresentação da peregrinação foi ainda mais contundente do que o seu homónimo na crítica às políticas que têm provocado um “grande fluxo migratório português, quase uma sangria da população portuguesa, pela Europa e pelo mundo”. Disse: “A emigração e as migrações são uma denúncia contra as políticas e contra os governos, ou seja, contra a incompetência dos políticos criarem condições para fixarem as suas populações”. E clarificou que essa incompetência é “fruto de uma crise de valores, de uma corrupção política e financeira que levou a que o país não tivesse condições para criar trabalhos e condições para fixar particularmente os jovens”.

D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e anfitrião da peregrinação, classificou a turbulência financeira e bancária que se vive em Portugal como mais uma manifestação da “ditadura do capitalismo financeiro e especulativo”, como a apelidou Bento XVI. Lembrou também o Papa Francisco e considerou o momento em que nos encontramos como o resultado da “tirania económico-financeira, especulativa, virtual, desligada da economia real”.

São palavras corajosas em que transparece uma sintonia com os pensamentos do anterior e do atual Papa. E – o que é fundamental – evidenciam o mesmo compromisso com os problemas dos mais desfavorecidos.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 15/08/2014)

domingo, 10 de agosto de 2014

A queda de um banco

Ricardo Salgado
Foto retirada daqui
A crise do BES é mais um exemplo de como o lucro a qualquer preço e uma gestão à margem da lei e da ética podem perverter uma atividade que deveria estar ao serviço do desenvolvimento humano, social e económico dos seus clientes e do contexto em que se insere.

“A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos”, recordava o Papa Francisco no nº 203 da “Evangelii Gaudium”.

Já Bento XVI, na “Caritas in Veritate”, avisava que “a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo” (nº 36).

De facto a Igreja não demoniza os mercados financeiros, mas valoriza o seu papel fundamental no crescimento económico, “que permitiu, entre outras coisas, apreciar as funções positivas da poupança para o desenvolvimento integral do sistema económico e social”, como se pode ler no nº 368 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, publicado em 2004, com o objetivo de apresentar de forma sistemática o pensamento católico sobre as questões sociais.

O mesmo Compêndio cita João Paulo II para denunciar “as ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo” que corrompem a atividade económica: “por um lado, há a avidez exclusiva do lucro; e, por outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: ‘a qualquer preço’. Por outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveis” (Sollicitudo Rei Socialis, nº 37).

Ambas as tendências parecem ter estado na génese do terramoto que ditou a derrocada do BES, bem como a queda do seu líder, “o banqueiro do regime”, como era considerado. Este que, se conhecia, não seguia a Doutrina Social da Igreja.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 08/08/2014)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O Papa e o pastor

Foto retirada daqui
Na sua deslocação a Caserta, no sul de Itália, para participar na festa da padroeira Santa Ana, o Papa Francisco teve um encontro com a comunidade pentecostal daquela cidade e o pastor evangélico, Giovanni Traettino. Uma “visita privada”, segundo o sítio oficial da Santa Sé, um “encontro de irmãos” para o Papa, que desde Buenos Aires vêm trilhando um caminho de “amizade” e “proximidade”.

Uma iniciativa papal surpreendente para alguns, com a qual o próprio ironizou no final do seu discurso. “Alguns estarão espantados: ‘Mas, o Papa foi visitar os evangélicos!’ Foi encontrar irmãos! – respondeu – Porque, na verdade, foram eles que vieram primeiro visitar-me em Buenos Aires. [...] Agradeço-vos muito, peço que rezem por mim, preciso muito... para que ao menos eu seja melhor. Obrigado!”

Anteriormente, tinha denunciado os católicos que colaboraram com a ditadura fascista de Mussolini e perseguiram os evangélicos que eram considerados uma seita e “nocivos à identidade física e psíquica da raça” italiana. Com a conivência de muitos – e à denúncia de outros tantos – muitos evangélicos foram detidos, vários pastores foram deportados e as suas igrejas destruídas. Por todas essas atrocidades, cometidas na Itália dos anos 30, pediu perdão aos pentecostais.

Esta é mais uma atitude do Papa Francisco que incomodou alguns sectores mais tradicionalistas, tanto católicos como evangélicos. Se uns não veem com bons olhos o “mea culpa” papal, os outros não apreciaram o acolhimento do pastor Giovanni Traettino ao Papa, nem estas palavras de saudação dirigidas ao amigo Bergoglio: “A nossa alegria é grande pela sua visita [...] E tem que saber de uma coisa: pela sua pessoa, também entre nós evangélicos, há muito afeto e muitos de nós também rezamos todos os dias por si. Além do mais, é muito fácil gostar de si. Muitos de nós acreditamos que a sua eleição como Bispo de Roma tem sido obra do Espírito Santo”.

O Papa está convicto de que a divisão entre os cristãos não é obra do Espírito Santo, mas do Mal que espalha a semente da discórdia entre irmãos. E pensa, também, que a unidade não pode ser construída na uniformidade, mas no respeito pela diversidade e no apreço pelo diverso.

(Texto publicado no Correio da Manhã de 01/08/2014)