quarta-feira, 30 de abril de 2025

No funeral, os últimos foram os primeiros

Os pobres na escadaria de S. Maria Maior à espera do Papa
Os últimos a despedirem-se do Papa Francisco foram um grupo de quarenta pessoas entre os quais migrantes, sem-abrigo, reclusos ou transsexuais, em representação daqueles que tiveram sempre o primeiro lugar no coração de Francisco: os mais pobres. Acolheram os restos mortais do Papa na escadaria da Basílica de S. Maria Maior e acompanharam-nos até ao túmulo.

Foram eles que ditaram a escolha do nome Francisco. Dias após a sua eleição, ele próprio revelou aos jornalistas que o cardeal brasileiro Cláudio Hummes lhe tinha recomendado que não esquecesse os pobres. Foi isso que o levou a escolher o nome do “Poverello de Assis”.

Contudo, mais importante do que a escolha do nome, foi a sua reiterada opção preferencial pelos mais pobres, aos quais sempre dedicou particular atenção. Se há palavras que caracterizam o seu pontificado, são as das denúncias das situações em que tantos homens e mulheres foram descartados pela sociedade.

A esta prioridade ficou intimamente ligado um conceito que ele repetiu muitas vezes: as periferias existenciais e geográficas. Francisco procurou sempre incluir e aproximar-se daqueles que estavam mais distantes. Ao ponto de, na Evangelii Gaudium, a sua Exortação Apostólica programática, pedir uma “Igreja em saída” que vá ao encontro daqueles que andam longe, que se antecipe às necessidades de todos. Introduziu mesmo um neologismo: “primeiriar”.

A “guarda de honra” que acompanhou o caixão foi uma ideia de D. Benoni Ambarus, delegado para sector da caridade do episcopado italiano. Foi acolhida por quem organizou o funeral porque traduziu bem aquela que foi a preocupação do Papa até ao fim do seu Pontificado: que os últimos fossem os primeiros. Do funeral para a práxis dos pastores, que estes primeiros o continuem a ser na atenção e nas iniciativas eclesiais.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Francisco despojado na vida e na morte

O Papa Francisco procurou exercer a liderança da Igreja Católica com uma simplicidade e proximidade que surpreendeu e fascinou muitos crentes e não crentes.

Na sua primeira aparição pública após a eleição, na varanda de S. Pedro, o novo Papa surgiu sem os vermelhos da romeira e estola pontifícia, previstos pelo protocolo, envergando apenas as vestes brancas papais. Apresentou-se como “bispo de Roma”, perante a multidão que o aclamava. Depois, no Anuário Pontifício, determinou que aparecesse apenas como “Francisco, bispo de Roma”. Todos os títulos históricos, como o de Sumo Pontífice, ficaram relegados para outra página. 

Desde o início, Jorge Mario Bergoglio deu sinais claros de que preferia uma Igreja despida do supérfluo, da sumptuosidade, de tudo aquilo que complica o anúncio de um Jesus Cristo pobre e humilde. Já se sabia que pretendia ser sepultado na Basílica de S. Maria Maior, em Roma. Soube-se agora que deixou escrito que o “túmulo deve ser no chão; simples, sem decoração especial e com uma única inscrição: Franciscus”. Determinou também que se localizasse num corredor lateral, próximo do altar onde se encontra o ícone bizantino “Salus Populi Romani” (Protetora do Povo Romano), no qual é representada a Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. 

Diante dessa imagem rezou muitas vezes quando era cardeal. Como Papa, antes de todas as viagens, ali se deslocava para invocar a proteção da Virgem Maria. No regresso, passava por lá para lhe agradecer “o dócil e materno cuidado”, como refere no testamento agora revelado. 

As disposições testamentárias de Francisco para a sua sepultura confirmam o desprendimento com que surpreendeu o Mundo no início do Pontificado. Um despojamento que caracterizou estes 12 anos em que calçou as Sandálias do Pescador e que perdurará para além da sua morte.

terça-feira, 22 de abril de 2025

A Igreja precisa de um Paulo VII

Papa Francisco no dia da sua eleição (13/03/2013)
Com a morte do Papa Francisco é mais uma voz que se cala na defesa dos mais pobres, dos refugiados, daqueles que são estigmatizados mesmo dentro da Igreja. Cala-se uma voz que teve a coragem de denunciar uma “economia que mata” e a insanidade da guerra.

As últimas palavras proclamadas em seu nome na bênção Urbi et Orbi, domingo no Vaticano, acabariam por ser o último grito de condenação da “corrida generalizada ao armamento” e em defesa da paz: “Apelo a todos os que, no Mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Estas são as ‘armas’ da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!”

Em contra corrente com o que acontece no Mundo, o Papa denunciou que “não é possível haver paz onde não há liberdade religiosa, ou onde não há liberdade de pensamento nem de expressão, nem respeito pela opinião dos outros”.

Antes, num Mundo envolto em incertezas, o Papa convocou a Igreja para o Jubileu da Esperança. É esta precisamente a palavra que dá título à sua autobiografia recente, na qual ele, humildemente, se assume como “apenas um passo” na caminhada da Igreja.

Na verdade Francisco não foi apenas mais um passo – mas foi o primeiro passo na renovação da Igreja em muitos âmbitos. Nomeou cardeais, por exemplo, em países que nunca tinham sido agraciados com essa distinção. Confiou a mulheres cargos que tradicionalmente eram entregues a clérigos. O Sínodo dos Bispos deixou de ser exclusivamente clerical, em que se ratificavam as ideias do Papa, para se converter na oportunidade de escutar todos e acolher as suas sugestões para a reforma da Igreja.

Um dos maiores desafios que o Papa deixa à Igreja é, precisamente, dar continuidade à renovação sinodal em que ele tanto se empenhou até aos últimos dias de vida. Foi a partir do hospital, há pouco mais de um mês, que convocou uma assembleia de toda a Igreja Católica para outubro de 2028.

Espera-se que o seu sucessor incremente este dinamismo na Igreja. Da mesma forma que Paulo VI não deixou que se travasse o impulso reformista do Concílio Vaticano II convocado por João XXIII, a Igreja precisa agora de um “Paulo VII” que assuma e institucionalize a dinâmica sinodal introduzida por Francisco.

O Papa Francisco lançou processos em ordem a uma “Igreja em saída”, que reclama pastores com “cheiro a ovelhas”. Compete ao seu sucessor consolidá-los e torná-los irreversíveis.


quarta-feira, 16 de abril de 2025

Um relato da Ressurreição pouco eficaz

Aparição de Jesus Cristo a Maria Madalena, de Alexander Andreyevich Ivanov (1835)
Os discípulos de Jesus acreditaram que ele os libertaria do domínio romano. Porém, ele acabou por ser sentenciado à morte na cruz por esse mesmo poder. Na manhã de Páscoa, os apóstolos estão desiludidos e até regressam às suas anteriores ocupações: só quando se dá a Ressurreição eles fazem uma releitura dos acontecimentos que viveram e a sua vida transforma-se completamente. Agora, acreditam que nem o sofrimento nem a morte são a última palavra sobre a vida humana. E assumem a missão de o anunciar a todos.

É surpreendente a forma como os evangelistas relatam esse acontecimento que está na génese do cristianismo. São as mulheres as primeiras testemunhas da ressurreição! Não era a escolha útil para dar maior credibilidade aos seus relatos, dado que naquele tempo o seu testemunho nem era aceite pelos tribunais.

Deus, por seu lado, também não se esforçou em dar uma maior eficácia à Ressurreição. Em vez de aparecer a algumas mulheres e a um grupo de seguidores que se dispersaram às primeiras dificuldades, poderia ter aparecido a outras personagens que conferissem uma maior credibilidade ao ressuscitado. A Pilatos que o tinha interrogado, por exemplo, para lhe provar que afinal tinha mais poder do que ele pensava. Ou a Herodes, que para gozar com ele o cobriu com um manto. Ou então ao sumo sacerdote e aos fariseus, para verem quão viciado tinha sido o julgamento a que o submeteram.

Não foi essa, todavia, a forma de proceder do Deus de Jesus Cristo. Ele não se impõe, propõe-se. Respeita a liberdade humana de o acolher ou de o rejeitar. De aderir a um projeto de vida com sentido ou acomodar-se à ausência dele.

À Igreja compete hoje dar continuidade ao anúncio que fizeram as primeiras testemunhas da Ressurreição. Dar sentido à vida humana. Quando não o faz está a ser infiel à sua génese.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Papa: um doente entre os doentes

Já se sabia que o Papa Francisco se faria representar este domingo no Jubileu dos enfermos e do mundo da saúde pelo arcebispo Rino Fisichella. Sabia-se, como vem sendo habitual neste período da convalescença do Papa, que seriam lidas as suas palavras dirigidas aos enfermos na homilia da missa.

Surpreendente foi o Papa ter aparecido em pessoa na Praça de S. Pedro, ainda que de cadeira de rodas e ligado ao oxigénio, para saudar os peregrinos e endereçar-lhes umas palavras, ainda que breves, de viva-voz: “Bom domingo a todos, muito obrigado”.

 Foi mais um enfermo no meio dos enfermos a celebrar o Jubileu da Esperança. Soube-se também que o Papa se confessou, rezou e passou pela Porta Santa, cumprindo assim os procedimentos propostos aos fiéis nas celebrações jubilares.

Na homilia os peregrinos já tinham ouvido as palavras do Papa expressando a sua solidariedade e proximidade aos enfermos. “Convosco, queridos irmãos e irmãs doentes, neste momento da minha vida, estou a partilhar muito: a experiência da enfermidade, de nos sentirmos frágeis, de depender dos outros em tantas coisas, de precisar de apoio”.

Nesta missa o Papa reconhecia que não é fácil acolher e aceitar a doença, mas considerou-a “uma escola na qual aprendemos todos os dias a amar e a deixarmo-nos amar, sem exigir nem recusar, sem lamentar nem desesperar, agradecidos a Deus e aos irmãos pelo bem que recebemos, abertos e confiantes no que ainda está para vir”.

O testemunho de Francisco ganha maior credibilidade porque é dito a partir da experiência que está a fazer da enfermidade. É sempre melhor ouvir os pastores falarem desde as suas vivências do que dos conhecimentos teóricos que porventura tenham acumulado ao longo da vida. Para aqueles que temos a obrigação de nos dirigir aos fiéis, é um desafio situarmo-nos aí quando falamos.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

O Papa experimentou a angústia de morrer

 O Papa Francisco na varanda do Hospital Gemelli, quando teve alta.
O Papa Francisco correu perigo de vida. Na tarde de 28 de fevereiro, a sua situação agravou-se e soube que podia morrer. Pediu aos médicos que fizessem tudo para o salvarem, como revelou ao jornal italiano “Corriere della Sera” 
 Sergio Alfieri, médico do Papa. Foi a vontade de viver e a oração dos crentes que salvaram o Papa, diz este médico que o acompanhou no hospital Gemeli. “Acho que o facto de o mundo inteiro estar a rezar por ele também contribuiu para isso”, disse.

Há quem estranhe que os católicos se agarrem à vida, já que, como dizem, acreditam que vão para uma situação melhor junto de Deus. Porque não se deixam morrer, então?

A vida de S. Inácio de Loiola, fundador dos jesuítas, regista um diálogo com o Pe. Laynez que viria a sucedê-lo como Geral da Companhia de Jesus.

– Se Deus, pergunta Inácio, te propusesse ir agora mesmo para o céu, assegurando a tua salvação, ou continuar na terra a trabalhar para a sua glória, que escolherias?

– A primeira, sem dúvida, responde Laynez.

– Eu, a segunda hipótese, replica Inácio. Achas que Deus vai permitir a minha condenação aproveitando-se de uma prévia generosidade minha?

Tal como Inácio, de que é seguidor enquanto jesuíta, Jorge Mario Bergoglio habituou-se a ir à luta em vez de desistir e seguir o caminho mais cómodo e confortável. Neste momento particularmente difícil da sua vida, o Papa revestiu-se da determinação inaciana e fez tudo o que estava ao seu alcance para continuar a viver. Entregou-se nas mãos dos médicos que, por seu lado, utilizaram todos os medicamentos e terapias possíveis para lhe curar os pulmões, mesmo correndo riscos de danificar outros órgãos, como reconheceu Sergio Alfieri.

Graças à sua determinação, à dedicação dos médicos e, para o crente, à oração dos fiéis, Deus concedeu ao Papa mais algum tempo de vida.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 02/04/2025)