quarta-feira, 26 de junho de 2024

A atualidade de ideias com milénios

Casa de Santa Rafaela Maria, em Palmela
Foto: Irene Guia retirada daqui
Olhar para a criação como um templo pode levar um crente a retirar diferentes consequências para a sua vida. Um israelita deportado para a Assíria (séc. VIII a.c.), ou no exílio da Babilónia (séc. VI a.c.), sem acesso ao templo, vai desenvolver a narrativa do mundo como o templo de Deus, plasmada na primeira descrição da criação no livro do Génesis da Bíblia. É nesse templo que pode continuar a desenvolver a sua prática religiosa.

Dois mil e quinhentos anos depois, em 1905, Santa Rafaela Maria, a fundadora das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, escreveu: “Estou neste mundo como num grande templo”.

Ela “escreveu esta frase nuns exercícios espirituais que fez numa fase difícil da sua vida”, explicou ao jornal digital “7 Margens” a irmã Irene Guia, da congregação de S. Rafaela. “Entrou para o retiro um bocadinho em baixo, mas, depois, sentiu-se revigorada – e usou esta expressão de estar no mundo como num grande templo”. E acrescentou na época S. Rafaela: “Como tal, devo ser sacerdote nele e oferecer sacrifícios de louvor”.

Inspirando-se nesta frase da fundadora, as Escravas promoveram, no passado sábado, uma tarde de reflexão na sua casa de Palmela. Os participantes puderam escutar diversas vozes, e ouviram até “os sem voz, os descartáveis de que fala o Papa, os invisíveis” falar sobre esse templo de Deus. Refletiu-se sobre a relação entre ecologia e a espiritualidade, sobre a “Economia de Francisco”, sobre o papel das artes na promoção dos direitos humanos. Falou-se também na proteção da casa comum e sobre aqueles que são marginalizados neste templo.

Não é fácil traduzir para os dias de hoje frases com décadas, com séculos ou milénios. Mas muitas delas podem iluminar os problemas do presente. Quem se empenhar em fazê-lo fica em melhores condições para dialogar com a cultura atual.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Deus ri e Jesus tinha sentido de humor

Encontro do Papa Francisco com humoristas, entre os quais
estiveram Ricardo Araujo Pereira, Joana Marques e Maria Rueff.
Foto retirada daqui
A relação da Igreja Católica com o humor é por vezes tensa. No passado, mesmo em Portugal, motivou condenações de peças humorísticas em que alguns se sentiram maltratados e até insultados nas suas convicções religiosas. Levaram, por vezes, demasiado a sério o que não deveriam ter valorizado desse modo.

Foi por isso surpreendente ver o Papa Francisco convocar ao Vaticano, na semana passada, mais de uma centena de cómicos. Não só os recebeu, como se atreveu a dizer-lhes que, quando fazem sorrir alguém, fazem “sorrir Deus”. E ainda que se pode rir com Deus, da mesma forma que se pode “brincar e gracejar com as pessoas que amamos”. O Papa, no final da audiência e de improviso, disse-lhes que “é mais fácil ser trágico do que cómico”.

Dizer que Deus ri, para o Papa, “não é uma heresia”. O Pe. James Martin, um jesuíta norte-americano, no livro “Deus Ri” vai mais longe na provocação: diz que “imaginar Jesus sem sentido de humor pode andar próximo da heresia”. Na verdade, se acreditamos que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como se encarregaram de definir os concílios dos primeiros séculos do Cristianismo, então ele tem de ter sentido de humor, pois esta é uma característica – e uma qualidade – do ser humano.

Apesar de os Evangelhos nunca o referirem explicitamente, para quem privilegiava o convívio à mesa com os seus discípulos, Jesus teria de possuir bom sentido de humor. Registam os Evangelhos a alegria que sentiam os que se encontram com ele, bem como os diversos apelos de Jesus a que se alegrassem. A alegria não pode ser estranha a um texto que se define como “Boa Notícia”. É o que significa a palavra Evangelho em grego.

Terá sido reconfortante para os humoristas verem o Papa reconhecer a sua arte de fazer rir. Logo eles, tantas vezes injustamente atacados pelas religiões.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 19/06/2024)

quarta-feira, 12 de junho de 2024

A Igreja é antídoto para a crise europeia

desagregação europeia.
Foto retirada daqui
O projeto europeu está em risco com o crescimento dos nacionalismos, da xenofobia e do racismo. O continente onde se consolidou a tolerância, muito devido à sua matriz cristã, é fustigado hoje pelos ventos da desconfiança e da desunião. O Velho Continente, que curou as feridas das duas guerras mundiais através da cooperação e entreajuda das nações, corre agora o risco de ser dilacerado pela ameaça da guerra às suas portas, vendo erguer-se de novo muros que tinha conseguido derrubar.

Apesar de há dias se terem celebrado os 80 anos do desembarque na Normandia – e de ainda estarem vivos alguns dos participantes – a Europa está a esquecer o caminho que percorreu para promover a paz no seu interior. Está a esquecer as razões fundas que motivaram a criação da Comunidade Económica Europeia, que depois evoluiu para a União Europeia, e os seus princípios basilares.

Foi neste contexto que os europeus foram chamados a votar e a escolher o novo Parlamento Europeu. Aqueles que mais cresceram são os promotores de nacionalismos, os quais, se não forem atalhados, levarão à desagregação de uma construção recente que, como todos os edifícios democráticos, produz resultados poderosos de liberdade e de desenvolvimento, mas é, ao mesmo tempo, delicada e frágil. Os eleitores, desiludidos com os partidos tradicionais cujo reformismo incremental não passa nas redes sociais, estão a deixar-se embalar pelos populistas xenófobos.

É neste contexto que a Igreja é chamada a dar o seu contributo para salvar o projeto europeu, atualizando e repropondo a mensagem evangélica: nela é bem clara a preferência de Deus pelo mais pobre, pelo marginalizado, pelo migrante à deriva, entre outros. Pelos “descartados da sociedade”, como diz o Papa Francisco. A palavra de Cristo é o melhor antídoto para radicais totalitários.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 12/06/2024)

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Os católicos na política e na Igreja


Na última semana, trabalhos jornalísticos sobre a fé católica de Marcelo Rebelo de Sousa e de Sebastião Bugalho vieram colocar a relação entre religião e política na primeira linha da análise política.

A grande questão é que, quando um político torna pública a sua fé, arrisca-se às mais diversas leituras. Se é católico, coloca-se numa posição mais delicada, porque, para além de seguidor de Jesus Cristo, assume também a sua filiação à Igreja Católica.

Seguir Jesus Cristo não causa grandes problemas, porque cada um faz a interpretação que mais lhe agrada dos Evangelhos. Cabe lá tudo, desde a extrema-direita à extrema-esquerda. Já a pertença à Igreja é mais problemática, uma vez que esta é constituída por homens e mulheres de diferentes contextos pessoais e culturais. Essa é a sua riqueza e a sua debilidade. Não é fácil manter a unidade e o consenso entre tantos fiéis, de tantas culturas, e propor condutas comuns a adotar... 

Não há nenhum partido político que acomode toda a riqueza do Evangelho e da diversidade da Igreja. Todos têm seguramente algo que está em consonância com os ensinamentos de Jesus Cristo, assim como todos têm posições que não são acomodáveis neles. Daqui decorre que católicos com diferentes mundividências optem por diferentes partidos (excluindo os que são antirreligiosos anticlericais) e todos continuem a ter lugar na mesma Igreja.

O desafio para um político católico é, portanto, traduzir aquilo em que acredita na sua atividade política. Ou seja: contribuir para que a sociedade se desenvolva de acordo com os valores fundamentais do Evangelho, tais como, a radical igualdade de cada mulher ou homem perante o Criador, o amor ao próximo, a tolerância, o perdão e a compaixão. Quem se afasta de valores como estes presta um mau serviço, quer à Igreja, quer aos partidos.