quarta-feira, 12 de julho de 2017

“Onomatopeias do Teu Nome”

O nome de Deus já fez correr muita tinta ao longo dos séculos. Refiro-me ao tetragrama sagrado que aparece na Bíblia como o nome de Deus.

É constituído pelas quatro consoantes hebraicas יהוה (Yode, Hê, Vau e Hê), que em caracteres latinos costuma ser escrito com YHWH. No hebraico primitivo só se escreviam as consoantes, as vogais subentendiam-se. Com o passar dos tempos, começaram a surgir dúvidas em relação à leitura do nome de Deus. Por isso discutiu-se se a pronúncia correta seria, entre outras, Javé ou Jeová. Entre judeus e cristãos foram sendo usadas ambas, com argumentos válidos usados por uns e outros para justificar a sua opção.

No “Dicionário dos termos da fé” podemos ler na entrada dedicada à palavra “nome”:
“Vocábulo que serve para designar as pessoas ou coisas. Na Bíblia pensa-se que o nome exprime o ser profundo das pessoas e das coisas: A tudo o que existe já há muito foi dado um nome (Ecl. 6, 10). Deus conhece cada criatura pelo seu nome (Sl. 146, 4) e o facto de o homem poder nomear os animais significa que é o seu dono (Gn. 2, 20). De maneira geral o facto de dar um nome a alguém ou de lhe mudar o nome atesta o poder que se tem sobre ele (Gn. 17, 5; 35, 10; 2 Rs. 23, 34)”[1].

Para os judeus causava algum desconforto pronunciar o nome de Deus, já que, na sua mentalidade, dizer o nome de Deus era ter poder sobre ele, pelo que assumiram o tetragrama sagrado como impronunciável. Quando ele aparecia diziam “Adonay”.
Na tradução para grego da Bíblia hebraica, conhecida como a Versão dos LXX, essa palavra é substituída por “Kyrios”. Quando houve necessidade de traduzir as Escrituras para latim, então utilizou-se a expressão “Dominus”, a que corresponde o vocábulo em língua portuguesa: “Senhor”.

Respeitando esta tradição, a Igreja católica, sobretudo na Liturgia, também não pronuncia o nome de Deus do tetragrama sagrado mas prefere a palavra Senhor. Perante algumas dúvidas nesta matéria, a Congregação do Culto divino enviou uma carta, a 29 de Junho de 2008, às Conferências Episcopais de todo o mundo a estabelecer essa práxis na invocação litúrgica do nome de Deus.

Ir. Maria José, sfrjs
A Irmã Maria José, confrontada com estas questões em torno da correta forma de pronunciar o nome de Deus, entregou-se com dedicação a essa problemática. Estudou-a, meditou-a, rezou-a... Fruto de todo esse labor, começou a desenhar-se no seu espírito um poema ao nome de Deus. E este foi-se desenvolvendo até se formar, no seu íntimo, o livro que hoje temos diante de nós com o sugestivo título: “Onomatopeias do Teu Nome”.

É um livro que pode ser lido apressadamente, em apenas uma semana, como tive de fazer. O que será apenas, e só, um primeiro contacto. O facto é que este despertou o desejo de uma leitura mais pausada, mais meditada e muitas vezes repetida, desde logo pelo puro prazer poético, o prazer formal, o prazer de ler boa poesia.

Para abrir o apetite, apresento algumas notas que fui recolhendo nesta primeira aproximação a esta obra.
Pela pena da Irmã Maria José vamos sendo introduzidos no mistério do nome impronunciável de Deus, o qual se traduz e plasma na criação como Onomatopeias do Seu amor. O nome de Deus está impresso em cada criatura – e toda a criação faz ressoar o amor de Deus.

Antes de mergulhar no nome de Deus, a autora deambula pelo “mundo dos nomes” e dá-nos conta da fragilidade das palavras. Contudo, os nomes dizem muito das pessoas que os usam, que os constroem, que os conquistam. Que tantas vezes “vendem o corpo e a alma ao esquecimento do presente para comprar a memória do amanhã” (pág. 34). Os nomes expressam e escondem a condição humana. A reflexão sobre os diferentes tipos de nomes é o caminho percorrido pela autora para aceder à “essência da humanidade” (pág. 42). Pelos nomes acedemos às grandezas e às misérias da condição humana.

Estamos, então, preparados para nos lançarmos no mundo bíblico. Acompanhamos os que fizeram da sua vida peregrinação traduzida num nome. Adão, Abel e Caim, Jacob, Ana e o filho Samuel, Moisés e o povo que caminha do Egipto à Terra Prometida, José e Maria são todos nossos companheiros na viagem pelo mundo bíblico dos nomes.

Deste percurso bíblico tocou-me particularmente a luta interior de Caim e a serenidade de Abel, traduzidas em linguagem poética. Um poema que traduz bem a tranquilidade de quem encontrou Deus e experimenta a harmonia no seu ser. Isso mesmo contrasta com o drama de quem deambula no contrassenso de uma existência em que nada faz sentido, porque não encontra o sentido último de todas as coisas.

Só então estamos preparados para mergulharmos, com a autora, na “perseguição do inominável”. Ela nos confidencia, preparando para a tarefa árdua que nos espera:

Quanto mar tenho de silenciar!
Quanto silêncio tenho de marear!” (pág. 81)

Tal como os judeus piedosos e a liturgia católica, concluímos que o nome de Deus é: Indescritível! Inenarrável! Indefinível! Indizível! Imperceptível! Invisível! Impronunciável! Não é possível nomeá-lo, é o Inominável! (págs. 88-89). Ou seja, é mais fácil dizer o que não é do que aquilo que ele verdadeiramente é. Não é acessível aos sentidos do corpo humano, mas inunda todos os sentidos do espírito humano, a quem se revela como belo, perfumado, melodioso, suave e saboroso (págs. 90-94).

De Deus com S. João, só podemos dizer: “Deus é amor!” (1 Jo. 4, 8) Parafraseando o evangelista, a Ir. Maria José dirá: “Ah! O teu Nome é Amor!” (pág. 96)

Finalmente, podemos reconhecer a assinatura do Verbo, em que o nome de Deus se faz carne. A Paixão segundo são Marcos dá-nos as pistas para encontrarmos a resposta para a questão que atravessa todo esse Evangelho: “Quem é este homem?” A autora conduz-nos pelos caminhos para o Calvário e oferece-nos oito pistas para, tal como o centurião do Evangelho de S. Marcos, descobrirmos a resposta: “Este era na verdade o Filho de Deus!” (pág. 106).

O nome de Deus, para os cristãos, é, também, Espírito Santo, que, com o Pai e o Filho, é Trindade. “Não na unidade de uma só pessoa, mas na trindade de uma só natureza”, como rezamos no prefácio da missa da Santíssima Trindade.

Aqui chegados, o nome de Deus faz-se Eucaristia, Ação de Graças, que conduz ao louvor perene e despido de sons que poluam a Palavra:

“A Vós, Nome que os espaços siderais não retêm,
na Atmosfera onde toda a revelação se evidencia,
submetemos o nosso silêncio deslumbrado,
ao aval de um louvor perene.
Amén.” (pág. 123)
  
A abordagem poética da Irmã Maria José não responde à questão estéril de como se pronuncia o nome de Deus, mas ajuda-nos – e muito! – a aprender a dizer o nome das coisas e dos outros, para podermos balbuciar o nome de Deus. No final desta primeira leitura do livro “Onomatopeias do Teu Nome”, habita-me o desejo de a ele regressar, por diversas vezes, para recolher as riquezas que ele contém, que não são acessíveis a uma primeira e rápida abordagem.

A primeira jóia que colhi da leitura desta obra é que, com quatro letras apenas, se escreve, em português, o nome de Deus: “Amor”.

Agradeço à Irmã Maria José por ter partilhado connosco a sua reflexão traduzida numa linguagem poética, que não me sinto habilitado a avaliar, mas que, como simples leitor, despertou sensações e vivências muito gratificantes.

Recomendo por isso a todos que façam uma leitura pausada, e repetida, que deixe ressoar no vosso íntimo as “Onomatopeias” do nome de Deus.



[1] VA, Dicionário dos termos da fé, Editorial Perpétuo Socorro, Porto 1995.

Fotos: Fernando Cordeiro